Natasha Craveiro e o seu caminho “nada convencional” no cinema

Só mergulhou oficialmente no mundo do cinema depois de quase duas décadas no mundo corporativo. Há sete anos, Natasha Craveiro abriu uma produtora, trilhou o seu caminho e este ano foi selecionada para participar no prestigiado Festival de Cannes, em Franças.

Formada em Sociologia, Natasha Craveiro não se via a fazer cinema tanto é que foi só depois de 19 anos que deixou o mundo corporativo para mergulhar nesta área. Entrou aos 40 anos mas diz que a sua alma já pertencia ao cinema. Este ano realizou um sonho e foi uma das profissionais cabo-verdianas presentes num dos maiores eventos da Sétima Arte, o Festival Cannes 2023. Antes da sua partida, Natasha conversou com o Balai e contou um pouco sobre como abraçou o cinema profissionalmente com a produtora Kori Kaxoru Films.

Participação na 76.ª edição do Festival de cinema Cannes

A ida a Cannes surgiu depois de ter submetido a candidatura à terceira edição do “DEENTAL at Cannes”. Esta é a segunda vez que Natasha Craveiro concorre. Trata-se de um programa que seleciona 6 profissionais que tenham acedido aos fundos da ACP – África, Caraíbas e Pacífico, que beneficia profissionais que fazem produções Sul-Sul, e que a produtora Kori Kaxoru beneficiou em 2021.

A candidatura ao Cannes foi individual, salienta e no festival teria oportunidade de fazer um pitch e de levar quatro projetos: Pirinha, que é da sua autoria, e ainda outros filmes como um projeto da Artemisa Ferreira que se intitula “Renato Cardoso”, “The Cicle” da Emília Wojciechowska e um filme da Ester Connet da Costa do Marfim que procurou a Kori Kaxoru para o efeito.

Antes da ida a expectativas eram elevadas. “Espero encontrar pessoas para coproduzir connosco porque é sempre bom ter um coprodutor o que aumenta também a tua possibilidade de aceder aos fundos. Apesar de se querer passar a mensagem de que é possível fazer filmes com pouco dinheiro, será que é possível fazer filmes com qualidade com pouco dinheiro? Não sei. Nós temos tido a sorte de ter dinheiro suficiente para fazer produtos com qualidade”, afirma e cita o exemplo do Omi Nobu que foi filmado em São Nicolau. “Tínhamos uma equipa de cinco pessoas, tivemos de pagar os bilhetes de passagem, estadia, alimentação, cachet de cada elemento (…) Há toda uma equipa que é profissional e que tem de ser paga pelo seu trabalho (…) Não podemos continuar a dizer que podemos fazer coisas só por amor. Fazemos sim por amor e paixão, até porque em Cabo Verde é isso que nos move para fazer cinema, mas quando há possibilidade temos de repensar nisso”.

Explica que esta tem sido uma preocupação da Kori Kaxoru sendo que conforme são os fundos assim são os pagamentos. “Não pensamos “Ahn é Cabo Verde e vamos pagar assim (menos)”, se temos este fundo pagamos a nível internacional porque em termos técnicos e criativos os profissionais trabalham a esse nível. A prova disso é que o Omi Nobu recebeu o Etalon d’Or “.

Surgimento da Kori Kaxoru Films

A produtora vai fazer sete anos de existência, mas a criação remonta a 2016, com o filme The Master’s Plan. A ideia de fazer esta obra surgiu nesse ano quando explodiu o escândalo das confissões públicas dos membros da CRASDT.

“Estávamos sentados eu, o Yuri (Ceuninck) e o Nenas Almeida, que sempre opina nos nossos trabalhos e em todos os nossos projetos ele que faz a direção de fotografia, e ele disse que a história dava um documentário. E aí eu perguntei: E porque não avançarmos? Essas pessoas não vão querer falar connosco, disse o Yuri”, recorda, mas para sua surpresa quando contactaram os membros da CRASDT via Facebook os mesmos mostraram-se disponíveis para falar. Assim surgiu o projeto The Master’s Plan.

Para recorrer a fundos internacionais era preciso estar ligado a uma produtora com existência jurídica e nesse momento Natasha lançou o desafio aos colegas: Vamos criar uma produtora.

“Tínhamos o projeto de um documentário, mas sabíamos que não iríamos encontrar financiamento em Cabo Verde. Então um amigo de São Vicente enviou uma lista que encontrou online com vários fundos internacionais para o cinema. Começámos a concorrer e começamos a ter respostas positivas”, recorda o processo serviu de aprendizagem para concorrerem a outros fundos.

“Temos tido um pouco de sorte, mas é também trabalho porque os nossos projetos têm alguma qualidade caso contrário não seriam aprovados e não se investia neles. Temos conseguido chegar lá com os nossos projetos”.

Quanto ao nome, revela que foi uma ideia de Yuri Ceuninck. “Passámos a nossa adolescência na Kebra Canela e kori kaxoru (apanhar ondas) foi o que mais ele fez. Foi um período que nos marcou a todos. Mas há também todo um simbolismo (…).

Yuri Ceunick é representado pela Kori Kaxoru Films e foi um dos fundadores da produtora, apesar de neste momento não estar diretamente ligado à empresa de produção, mas faz parte da Kori Kaxoru. 

Casada com o realizador cabo-verdiano (Carlos) Yuri Ceuninck, Natasha opta por usar o apelido da mãe a nível profissional para conquistar o seu próprio espaço no mercado. “Foi uma opção que tive de fazer”, explica e reconhece que a relação com o companheiro acabou por impulsionar a sua entrada nesse ramo. 

A estreia do filme The Master’s Plan aconteceu num festival internacional na Nigéria e foi depois exibido duas vezes em Cabo Verde, até então. “Temos de acarinhar mais o filme The Master’s Plan em Cabo Verde, fazer outras exibições localmente e mostrá-lo mais às pessoas. Fomos nos focando em outros projetos (…) no cinema cada estágio tem vida própria e nós estamos novatos nesta produção em si que envolve desenvolvimento, a produção e a pós-produção e depois há um outro processo que normalmente são os streamings, a divulgação, a exibição em festivais, o colocar na TV. E claro nós não temos um agente com o The Master’s Plan, então, futuramente quando o volume de tarefas for menor, queremos voltar a apostar porque é um filme que foi feito com muito amor e me-rece ter a sua oportunidade de ser visto pelas pessoas.”

Neste momento são só mulheres a trabalhar na produtora. “Efetivamente sou eu e a Emília Wojciechowska. Temos ainda a Cláudia que faz a assistência da produção e a Indira também”.

“Em Cabo Verde, fazemos filmes e eles ficam meio engavetados, não temos salas de cinema e o que temos é extremamente comercial, quando vais lá dizem-te são 700 escudos por cada cadeira, o mesmo que qualquer uma dessas produções de Blockbuster de Hollywood, e nós sabemos que muitos não vão ver esse filme. Portanto é um investimento muito grande e enchendo a sala ou não, tens de pagar à mesma”, afirma e ressalva que é preciso primeiro conseguir uma almofada financeira.

O caminho nada convencional para o cinema

“O cinema está presente na minha vida desde criança”, confessa Natasha. “Vim de uma família que gostava muito de cinema. Vi muitos filmes desde pequena, na maioria bons filmes, vencedores de Óscar, filmes de autor, que na altura não percebia, mas hoje percebo. Sempre tive a paixão. Em São Vicente, toda gente ia ao cinema. Infelizmente, agora já não, não há (salas). Para mim foi um marco chegar aos 12 anos para poder ir ao cinema sozinha e havia muitos filmes para maiores de 12.”

Formada em Sociologia, Natasha não se imaginava a fazer cinema. “Não me via a fazer cinema profissionalmente e tinha os receios que toda a gente tem: Tenho de fazer um curso que me pode ajudar financeiramente. Embora, a sociologia hoje em dia não é um curso que dê para isso (risos), mas na altura pensei assim. Entretanto, trabalhei 19 anos na Shell (Vivo Energy) e ainda no início da Kori Kaxoru trabalhei com a empresa, mas chegou um momento em que tive de decidir”.

“Na minha candidatura para a participação no Festival Cannes 2023 era preciso escrever uma carta de motivação, o que eu disse é que não sei se fico contente ou não, mas o meu caminho para o cinema não é nada convencional, comparativamente com outras pessoas, até porque eu já entrei com a mão na massa, depois é que fui para a teoria”, diz a produtora prestes a completar 47 anos.

Mãe de dois filhos, foi preciso anos para ganhar coragem para abandonar o mundo corporativo. “Não é fácil, por mais que queiras ficar livre da formalidade do mundo corporativo (…), mas foi preciso muito tempo para assumir que era um ciclo que já tinha fechado e que eu precisava de começar um outro”.

Questionada se foi bem recebida nesta área, Natasha diz que de certa forma já estava envolvida no mundo da Sétima Arte. “Já estava completamente de alma e em parte de corpo, então não foi um choque e se repararmos a Kori Kaxoru está a fazer um caminho e um pouco pioneiro que outros intervenientes, as gerações anteriores, não tinham feito. Fizeram o seu percurso que tem o seu valor, mas o percurso que a Kori Kaxoru fez de correr atrás de fundos internacionais, de participar nos mercados, isso é algo novo, que depois de termos feito os primeiros, começaram a ir outras pessoas da área, vieram ter connosco para entender melhor como poderiam fazer e passamos o que tínhamos (…), portanto senti-me completamente à vontade”.

Paralelamente também escreve e realiza. “Passei agora 10 dias a filmar o meu próximo filme que se intitula Pirinha, a produção já está. Agora é a pós-produção e em Cannes quero encontrar parceiros para tal”, explica e acrescenta que os restantes projetos nos quais está envolvida cada um se encontra numa fase diferente (uns em desenvolvimento, outros na produção, outras na pós-produção) e a intenção é conseguir pessoas que se interessam pelos projetos nas diferentes fases para apoiar a nível financeiro.”

Cinema em Cabo Verde

Questionada sobre se é desafiador fazer cinema em Cabo Verde e de que forma a 7ª Arte é tratada pelas entidades competentes, apesar de reconhecer as dificuldades, Natasha Craveiro diz que neste percurso de quase sete anos, a Kori Kaxoru tem notado uma diferença. “Reparei alguma valorização da parte do público, as pessoas já nos abordam na rua e já dão valor ao que é o cinema. Ao contrário do que podemos imaginar, o público cabo-verdiano é muito educado e sabe muito mais do que se imagina. E depois de recebermos o prémio sentimos isso.”

Relativamente as entidades, diz que estão a ser dados alguns passos. “Se desejaríamos que fosse mais rápido? Sim. Se desejaríamos que houvesse mais atenção? Sim. Se desejaríamos que houvesse mais apoios financeiros? Sim. Mas… temos de dar a César o que é de César, se calhar estão a ser dados alguns passos e isso é bom. Já temos uma lei de cinema. Isso é ótimo. Se ela está em conformidade e de acordo com a nossa realidade? Não. Precisa de ser trabalhada e aprimorada. Não tínhamos absolutamente nenhum fundo para o cinema, agora já temos. Que não é fundo que permita fazer uma longa metragem, mas já é um incentivo e um apoio para as fases de desenvolvimento de projeto e depois com o desenvolvimento pronto podes concorrer para outros fundos lá fora. Claro que gostaríamos de estar com mais atenção na área, mas já estivemos pior, portanto ficamos contentes com os passos que já foram dados e esperamos que muitos mais sejam dados para desenvolver a indústria cinematográfica de Cabo Verde que é praticamente inexistente”.

Lamenta que não haja escolas de cinema, nem salas de cinema. “(…) embora em São Vicente exista uma cultura de cinema e aqui na Praia também as pessoas gostam, é preciso trazer esse gosto para as gerações mais novas que estão a crescer sem salas de cinema, como nós tivemos”, afirma.

Também salienta a importância de haver uma aposta no ensino para desenvolver esta área. “Se já podemos abrir um curso de Medicina, também podemos abrir um curso de Cinema. Não acredito que haja falta de pessoas para ensinar. Agora cabe às autoridades que têm os meios, não só financeiros, mas todos os outros meios para fazer acontecer”.

Comparativamente a outros países africanos, Cabo Verde ainda tem um longo caminho a percorrer, comparativamente a Senegal, por exemplo, diz a produtora. “O Senegal tem uma indústria de cinema a funcionar. Tem uma casa de pós-produção, por exemplo. Se formos mais longe para Burkina Faso, um país onde apesar de tudo o que acontece lá (instabilidade política e conflitos internos), mas só para termos uma ideia, o FESPACO ( festival pan-africano de Cinema de Ouagadougou) existe há 50 anos. Em Ouagadougou há uma Avenida dos Realizadores, várias salas de cinema, um público que consome e percebe, que dá para ver quando chega o momento dos créditos (no filme) e ninguém se levanta para sair. Aí realmente é incomparável”, diz a produtora e explica que o FESPACO é suportado por fundos públicos e nesta edição, por exemplo, contou com a presença de ministros da Cultura e de outras entidades de vários países africanos. “Nós ainda temos um caminho por percorrer. Eles já têm um caminho reconhecido a nível de África e mundialmente”.

Distinção do Omi Nobu no FESPACO vai ficar para a história

A conquista do galardão de ouro na 28.ª edição Festival foi duplamente gratificante. “O FESPACO é um festival de peso internacional. Quando acabamos de vencer o galardão começaram a chover pedidos de festivais da lista A para apresentarmos o “Omi Nobu”, diz e explica que geralmente é preciso pagar para fazer essa submissão e neste caso estavam livres deste custo. “Não sei se o filme vai passar, mas o interesse demonstrado mostra a importância do FESPACO (…) Existe uma Kori Kaxoru antes e depois do galardão de ouro”.

Reprodução Facebook

Produzido pela Kori Kaxoru Films e finalizado em janeiro de 2023, o filme que conta a história de um homem que viveu décadas sozinho numa aldeia do interior da ilha de São Nicolau fez a sua estreia mundial neste FESCAPO, a 27 de fevereiro, após ter sido selecionado para competição. Questionada se depois desta distinção, os integrantes da Kori Kaxoru sentem-se enquanto embaixadores do cinema cabo-verdiano até porque o filme retrata um pouco da vivência de Cabo Verde, Natasha Craveiro fala num sentimento de grande orgulho. “Quando vi o filme pela primeira vez numa grande sala foi lá (Ouagadougou), escrevi um post a dizer que vi um documentário criativo cabo-verdiano e para nós não há orgulho maior do que isso (…) Para nós, é muito importante fazer conteúdos cabo-verdianos, com a nossa assinatura que nos distingue do resto, há coisas que são universais, mas depois há as que são só de Cabo Verde”.

“Recebemos o feedback de um cineasta angolano que ficou impressionado por termos conseguido condensar a história de um povo nesses 60 e poucos minutos. “Para nós é uma grande responsabilidade ser considerados embaixadores, mas é uma grande honra também saber que estamos a levar Cabo Verde a espaços que ainda não tínhamos ocupado, onde nunca estivemos a nível do cinema. É um privilégio grande (…).

Revela que a Kori Kaxoru sabia do potencial da obra até porque trabalharam para tal mas havia outros documentários que eram também fortes candidatos. “Eu fiz os meus cálculos, o Yuri estava mais pessimista do que eu. Pensei que talvez fosse uma menção honrosa. Era a primeira vez que Cabo Verde estava a ir para o FESPACO. Apesar de ter ouvido que já houve um outro filme (cabo-verdiano) no festival, isso não existe. O primeiro filme cabo-verdiano nomeado para a competição oficial foi o Omi Nobu”, recorda e acrescenta que depois de terem atribuído todas as menções honrosas, de terem sido entregues os outros galardões e do discurso do presidente do júri sobre um país que não se vê no panorama mundial do cinema viu que realmente a obra cabo-verdiana tinha ganho o prémio.

“Para nós foram os sete anos de trabalho e não só o Omi Nobu, foi todo o caminho até esse momento”.

A nível de filmes produzidos, a Kori Kaxoru Films conta com obras como “The Master’s Plane”, “Dona Mónica”, “Mama”, “Omi Nobu” e “Pirinha”.

“Tenho por princípio que primeiro tenho de mostrar ao meu povo o meu trabalho antes de mostrar a quem quer que seja. Com o “Omi Nobu” não foi assim, infelizmente (…) ainda não sabemos para quando uma estreia em Cabo Verde. Esperamos que seja para breve”, afirma Natasha Craveiro e acrescenta que a produtora privilegia as produções Sul – Sul.

A nível de planos, a produtora revela que é antes demais terminar Pirinha e fazer a estreia em grande do Omi Nobu em Cabo Verde, numa apresentação que vai ser apoiada pelo ministério da Cultura e da Indústrias Criativas e que deve acontecer em três ilhas: São Nicolau, onde a obra foi gravada, depois Santiago (Praia) e São Vicente. “Acredito que vamos fazer uma estreia digna para um filme cabo-verdiano.”

A produtora também está a trabalhar num novo projeto cujos detalhes ainda não pode revelar.

Cristina Morais

Cristina Morais

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