

No âmbito de uma passagem pela cidade da Praia onde deu dois concertos, Kavita Shah partilhou com o Balai CV a sua trajetória musical até chegar ao álbum de música cabo-verdiana.
Nascida em Nova Iorque, Kavita é filha de imigrantes indianos nos EUA. Diz que cantar sempre foi tão natural quanto falar. “Nasci com a música no meu corpo, no meu espírito e no meu jeito. Comecei a cantar e a falar ao mesmo tempo”.
Aos 5 anos começou a aprender piano clássico e aos 10 anos entrou para o Young People’s Chorus de Nova Iorque, com este coro viajou pelo mundo e pelos variados estilos musicais e conheceu colegas de diferentes origens, culturas e contextos sócio-económicos.
“É um coro de alto nível, nós cantávamos muito no Carnegie Hall (…) Fazíamos 50 concertos ao ano (…) Cantávamos em mais de 20 línguas”. Foi também onde travou a sua primeira experiência com o jazz e com o gospel. E assim foi até os 18 anos.
Oriunda de uma família de imigrantes, ser artista não era uma opção. “Ninguém na minha família é artista”. Era uma aluna aplicada e acabou por entrar para uma das melhores universidades dos EUA – Harvard, e como gostava de línguas, falava espanhol e estava apaixonada pela cultura latino-americana, acabou por seguir Estudos Latino Americanos. Na universidade aprendeu português, a língua que mais depressa aprendeu na sua vida.
Contudo a primeira vez que cantou em público na língua de Camões, foi em Goa. Situada no sudoeste da Índia, esta foi uma colónia portuguesa até 1961. Kavita recorda-se que depois de estar doente durante algum tempo, aos 9 anos foi de férias para a Índia e foi a Goa, uma viagem que a marcou para sempre por vários motivos: esta foi a sua primeira estadia num espaço que não era anglófono e foi onde ousou cantar pela primeira vez em português, “O Samba de Orfeo”, tema que aprendeu na escola nos EUA.
“Para mim não é a música que mais me interessa, é a cultura. E a música como veículo para entrar na cultura. Para mim o mais importante é entender como a música vive numa comunidade e como faz parte da cultura e da história”, explica a artista.
Em 2005, foi para a cidade mais negra do Brasil, Salvador da Bahia, e onde trabalhou com um bloco afro que operava numa periferia da cidade. Lá encontrou uma comunidade que enfrentava problemas de racismo e várias questões de autoestima e pobreza. “Este grupo, a partir da apropriação de símbolos da diáspora africana e através da música, conseguiu construir uma negritude e uma consciência negra muito forte na comunidade. Era muito interessante trabalhar com eles”. Foi nessa comunidade que se familiarizou com o samba reggae e a questão social e onde aprendeu a fazer pesquisas etnográficas e de campo enquanto cantava e compunha.
“Consegui ver a música tanto como algo que pode existir tanto para entretenimento, como para questões muito importantes. Pessoalmente, consegui ver a música como algo que poderia combinar o amor natural que tenho pela música com os meus interesses intelectuais na língua, na identidade, diáspora, raça. Foi aí que decidi ser música (profissional).”
Cize, “uma artista natural que não forçava nada”
Também foi nessa viagem de auto-descoberta que ouviu pela primeira vez a Cesária Évora a cantar ao vivo durante um festival panafricano, no Dia da Consciência Negra.
“Já conhecia umas canções dela que eu gostava, mas vê-la ao vivo foi algo muito forte que me comoveu. Ela era uma pessoa muito autêntica, uma artista natural que não forçava nada, não estava a fazer entretenimento. Bebia, fumava, estava descalça, mas o sentimento que tinha ao vê-la foi de autenticidade. Estava completamente vidrada, foi completamente cativante. (…) Ela tinha um poder muito grande que vinha de dentro que vinha de ela ser autentica”.
Nascia assim, ainda que de forma inconsciente, a vontade de um dia explorar o que era a terra de Cesária. Mal sabia que viria a conhecer e a apaixonar-se pela terra de Cesária em 2016.
Depois da pesquisa de campo no Brasil, Kavita converteu o material numa tese académica abordando temas como a diáspora, a música e a identidade. Ainda na dúvida sobre o que queria fazer, Kavita chegou a trabalhar em Jornalismo, também na área de Direitos Humanos e em 2010 ingressou num mestrado na área da música, mais especificamente dentro do género de jazz.
Já estava familiarizada com o género musical desde os tempos do Young People’s Chorus, quando sentiu uma ligação muito forte e uma sensação de liberdade. “Acho que sendo de um grupo de uma minoria étnica e crescendo nos EUA onde também compreendi o racismo, eu me identificava com a história dos afro-americanos e é natural ver o jazz como parte desta luta. Foi algo com o que me identifiquei e me deu a sensação de liberdade, um lugar onde és livre para te expressar de qualquer jeito (…) sempre gostei de ouvir jazz em casa principalmente o jazz dos anos 1920, 30 e 40.”
Como sabia que queria estudar e ser música profissional e não queria enveredar pela música clássica mas queria ter mais conhecimento por isso se concentrou mais no jazz. “Eu acho o jazz muito interessante porque tem a ver com uma abertura ao mundo, uma música crioula nascida de várias culturas sobretudo nas tradições afro-americanas (…) há tantas fontes e ramificações no jazz que dá para explorar o jazz e inundá-lo com outras tradições também. O jazz é uma linguagem que é permeável, universal e aberta que se presta a várias interpretações.”
Concluiu o mestrado e começou a sua carreira musical, lançou um álbum em 2014, fez digressões e a ter sucesso profissional. Até que em 2016 teve de fazer uma pausa na carreira e veio parar a São Vicente, onde passou quase um mês e meio. A escolha do destino foi do marido de Kavita. Mindelo foi uma descoberta para a artista e nesta cidade se sentiu em casa. “Lembro-me fui para a praia (Laginha) e beijei o chão”. Um gesto em sinal de agradecimento ao universo por a ter trazido até lá.
Um dia quis comprar instrumentos musicais, um cavaquinho e uma guitarra, e alguém indicou-lhes a oficina de Aniceto Gomes e este que lhe indicou o guitarrista Bau para ensinar a tocar. “Nem sabia quem era o Bau, nem que ele tinha trabalhado com a Cesária “, recorda que depois de uma semana ao conhecer o músico se esqueceu do cavaquinho e “só queria cantar com ele”.
Estavam lançadas as bases para o que seria uma parceria que viria a se transformar num álbum que ninguém previa – o “Cape Verdean Blues”.
“Foi assim muito natural, passamos horas a trocar ideias, conheci cada canção da Cesária. Já conhecia Sodade porque já tinha gravado no seu primeiro disco. Era assim, de manhã ia para Salamansa com os fones e escrevia coisas em crioulo e à tarde ia em casa do Bau e gravava aquela canção (…) Nunca pensei que fosse gravar um disco. Não estava nos planos”.
Nesse ano chegaram a fazer um concerto juntos. Em São Vicente, Kavita fez várias amizades e conheceu vários músicos como o multi instrumentista Vasco Martins.
Optou por fazer pesquisa sobre a vida e obra de Cesária Évora, as mornas e coladeiras e o crioulo cabo-verdiano, um trabalho semelhante ao que tinha feito no Brasil. “Para mim, está tudo relacionado entre si”.
Cape Verdean Blues
Quando regressou em 2018 conheceu Morgadinho e gravou uma canção inédita “Um abraço di morabeza”. Foi nessa altura que surgiu a ideia de escrever umas coisas, já tinha começado a gravar para recordar estes momentos. “Ia ser só uma sessão com alguns músicos (…) Gravamos umas dez canções e dei-me conta que tínhamos um disco”.
A parte vocal foi gravada em Mindelo e as guitarras em Lisboa, Portugal. Apesar de considerar que foi “meio maluco” gravar em dois países, Kavita reconhece que no final foi bom porque conseguiu ter o “sentimento que tem em Cabo Verde da sua voz”.
Como já tinha a consciência de que ia ser um disco, a cantora achou que seria bom convidar um percussionista e conheceu Miroca Paris que veio propor umas ideias novas.
“Apesar do Bau ter uma música muito tradicional, mas como tem viajado muito também é uma pessoa muito aberta a outras coisas. O Miroca até é mais aberto porque ele toca muitas coisas e com muitos músicos (…) por isso tem uma perspetiva diferente e uma boa ligação entre ele e o Bau. Todos temos respeito pela tradição e eu e o Miroca temos também outras abertas e dá para trabalhar muito bem juntos”.
Entre os 12 temas que compõem o álbum, Kavita gravou com a Fantcha, com Zé Paris no tema Jóia e ainda um tema indiano, Chaki Ben, com um mestre de Marrocos.
Por coincidência conhecia a Fantcha desde os EUA, já que a filha desta que tinha feito o vestido de noiva de Kavita. “O Báu e o Vaiss, que também tocou com a Cize, dizem que não há pessoa que conheça melhor a verdadeira Cesária mais do que a Fantcha”.
O título do disco é inspirado no falecido pianista e compositor de origem cabo-verdiana Horace Silver, cuja obra Kavita conheceu através da sua mentora Sheila Jordan, de 94 anos e que era amiga do músico. “Ela me contava histórias dele e me ensinou algumas canções. Uma delas eu gravei com ela no meu último disco. Já tinha uma ligação ao Horace e depois foi a minha forma de homenagear a ligação entre jazz e Cabo Verde”.
Kavita entendeu e sentiu finalmente o significado de Blues através do sentimento “sodade”.
“É muito engraçado, mas eu nunca tinha feito essa ligação até recentemente. Para mim o blues é a “sodade”. Foi na morna que eu consegui expressar a minha “sodade” e o meu blues. Ainda não fiz isso no blues americano, talvez um dia. Era como se a morna fosse uma forma de expressão que eu estava à espera para poder expressar as coisas que tinham dentro de mim, sendo filha de imigrantes, parte de uma diáspora e de um país com o qual na verdade nao tenho muita ligação, tenho saudades dos meus familiares que morreram, o meu pai morreu quando eu era jovem e perdi os meus quatro avós mais tarde, e acabei por perder aquela conexão com a Índia (…) Viver com a consciência de algo que não poder vê-lo e tocar, isto para mim é sodade”.
Esta conexão com a palavra blues aconteceu nos EUA durante a primeira digressão de apresentação do álbum com Báu, Jorge Almeida e Miroca Paris. No total, foram 10 concertos, sendo que um deles em Chicago ficou na memória, num festival de Blues. No evento, um jazzman que cantava e tocava harmónica dizia “o que faz do Blues o Blues é o sentimento”, recorda Kavita, algo semelhante ao que Bau diz sobre a morna. “O que faz a morna é o sentimento. Foi lá que eu disse: ahn a morna é blues.”
De seguida foi a Portugal onde deu mais três concertos, em Lisboa, Porto e em Lamego, onde contou com a participação de Nancy Vieira e Zé Paris, e a recepção do álbum foi muito calorosa. “Foi incrível ver a recepção daquela música e acho que há muita gente que gostava e conhecia a música de Cesária e acho que isso o concerto dá oportunidade de reviver e de ter uma nova perspetiva e ouvir algo diferente ao mesmo. Fiquei muito comovida pela receção em Portugal. Realmente, não esperava.”
Apesar de considerar que muitos dizem que Cabo Verde é um país pequeno, Kavita surpreendeu-se ao ver que nos concertos em Portugal, no público havia pessoas que tinham pais e amigos que tinham visto o seu concerto em Mindelo. “Foi interessante ver esta aldeia global.”
Outro aspeto que Kavita salienta é a conexão com a aldeia musical de Cabo Verde, tendo a Nancy Vieira e o Zé Paris participado no concerto. “Foi como se a rede de Cesária continuasse. Acabei um dia por ter uma conversa com o Vaiss e falamos da Cesária, é como se a minha pesquisa continuasse e a cada dia tivesse mais perspetivas e pontos de vista sobre a Cize”.
Quanto ao futuro, Kavita diz que ainda há para divulgar neste disco e muito por descobrirem juntos. “Temos uma parceria incrível (com a banda), são como membros da minha família, mesmo que fizer outro projeto ainda vamos explorar coisas”, diz Kavita que aliás já tem outro disco na gaveta com o seu quinteto de jazz nos EUA e que é baseado no seu legado indiano, mas este só deverá ser lançado em 2025.
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