Herança histórica e modelos sociais ajudam a perpetuar comportamentos que favorecem relações abusivas, explica psicóloga

“Há uma herança histórica que perpetuou certas condutas que precisam de ser ‘desaprendidas’ e isso vai demorar algum tempo”, explica Sandra Perez, psicóloga clínica e terapeuta.

Por se sentirem responsáveis e, muitas vezes, culpadas de não serem capazes de manter um relacionamento, sendo ou não uma relação abusiva, são as mulheres que mais procuram ajuda por causa de relacionamentos, explica Sandra Perez, psicóloga clínica e terapeuta. Em entrevista ao Balai, a especialista cubana que há sete anos trabalha em Cabo Verde deixa o alerta de que a perceção da agressão, seja ela física ou não, está relacionada com a autoestima e explica quais os sinais de controlo aos quais se deve estar atento.

De que forma que num país onde a violência contra a mulher ainda é bastante presente o conceito de relação abusiva está relacionado com essa violência? Será que as mulheres estão conscientes do que é uma relação abusiva? Existe uma certa ideia que uma relação abusiva é onde há violência física, mas não é bem assim. Afinal, o que é uma relação abusiva?

SP – De facto um relacionamento abusivo é aquele onde uma pessoa utiliza o poder que acha que tem sobre outra pessoa para controlá-la e manipulá-la. Há diferentes tipos de abuso, como o psicológico, e geralmente começa por aí, onde o abusador constrói uma imagem de si mesmo onde a pessoa acaba por acreditar que é autocuidado ou romance, mas são sinais que no início do relacionamento a pessoa não percebe como excesso de controlo. Depois geralmente evolui para a agressão física, mas sempre começa nesta primeira fase. Muitos dos sinais que acho que as mulheres cabo-verdianas e as mulheres em si ainda romantizam são aqueles sinais de cuidado excessivo e elas dizem coisas como: “Aí que fofo, ele se preocupa comigo, ele implica com a forma com que eu me comporto e fala sobre a minha roupa porque quer cuidar de mim, por achar que os outros vão implicar por causa da forma como eu me visto”. Então elas dizem que o parceiro está preocupado e cuida delas. Quando na verdade são sinais claros de controlo. Aí a pessoa está na fase inicial de abuso psicológico que é onde o abusador constrói todo uma estrutura para controlar a pessoa. Implica, por exemplo, com as amizades: “Ah as tuas amigas não prestam. Estás a sair com estas amigas à noite, mas elas não são boas para ti”. Começa aos poucos a afastar dos familiares porque perante cada um destas dúvidas a mulher faz o quê? Ela vai e pergunta para as amigas (…) E quando ela recebe o feedback de que está a ser controlada ou que esta forma de ser não faz parte do seu comportamento, o que acontece? A mulher se afasta da família e da rede de apoio. E aí o abusador passa para a fase seguinte (…) Quando a vítima já está afastada e não tem mais uma rede de apoio, ele começa a controlar excessivamente e parte para a violência patrimonial, a controlar as finanças, ele que decide o que ela faz com o dinheiro, se trabalha, ou não. Nem sempre para ser considerada agressão ou relação abusiva a violência começa por uma pancada ou por uma pegada no braço, começa nestes pequenos sinais de controlo que a pessoa vai ignorando e que a vítima não percebe como agressão ou abuso.

Isto também tem a ver com a autoestima da mulher?

A agressão e a perceção desta agressão começam na autoestima. Geralmente, as mulheres que sofrem abusos são mulheres com uma autoestima e um amor próprio muito degradado e o que faz com que elas se corrompam a nível de princípios. Para ser melhor entendido acontece assim: Imagina que eu sou uma mulher com uma autoestima baixa e eu preciso de validação externa. Quem tem uma autoestima baixa não considera o valor dela própria e a sua capacidade de ser e estar, precisa de uma fonte externa de validação. Quando se adquire essa fonte externa de validação, a vítima pensa que finalmente alguém a achou importante e viu algo de bom nela. Todos precisamos de validação, mas quando não somos capazes de nos validar a nós mesmos procuramos essa validação onde? Fora. E aí elas estabelecem um vínculo da dependência emocional. Não importa que o parceiro as trate mal porque encontraram nele a fonte de validação. O que que vai acontecer? A mulher vai fazer tudo, abrir mão dos seus princípios e valores para não perder esta fonte de validação.

Mas, por exemplo, mesmo existindo esta dependência emocional não necessariamente entramos no campo da relação abusiva ou não?

– Existe grande probabilidade de se evoluir (para uma relação abusiva) quando a autoestima de uma das pessoas está afetada, porque aí ela não pára para avaliar os parâmetros na outra pessoa e não vê estes sinais iniciais de controlo, a nível psicológico. A pessoa vai de cabeça na relação sem avaliar a conduta do outro. Por isso quando uma pessoa tem a autoestima baixa ou falta de amor próprio é mais fácil entrar num relacionamento abusivo e custa mais sair dele porque ela não se acha capaz …

Não se acha capaz de estar numa relação com uma outra pessoa ou de sequer viver sozinha?

– Porque a pessoa não se acha capaz de tomar conta da sua vida sozinha porque, a nível emocional, ela precisa dessa fonte de validação externa, de algo que ela acha que é amor. Isto começa na primeira infância como a pessoa cresceu com uma falta e um vazio emocional que precisa ser preenchido de qualquer forma, ela pega no primeiro que aparece seja abusador ou não. Por isso há mais probabilidade uma pessoa com falta de autoestima, de autoconfiança, de amor próprio, entre mais facilmente num relacionamento abusivo. A minha mensagem é fortaleçam o vosso amor próprio porque quando se tem um amor próprio fortalecido, sabemos quais são os nossos princípios, o que é negociável e o que não.

Da sua experiência, é mais comum mulheres ou homens ficarem em relações abusivas, tendo em conta que vivemos numa sociedade patriarcal?

– Quem mais atendo no meu consultório são mulheres.

Mas é porque elas procuram mais ajuda?

Elas são as que procuram ajuda porque se sentem responsáveis e, muitas vezes, culpadas de não serem capazes de manter um relacionamento, sendo uma relação abusiva ou não. Acho que neste ponto a questão social tem muito a ver. Tem-se passado uma falsa ideia da parceira perfeita. A mulher antropologicamente ela desenvolveu o papel de cuidadora, ficava na caverna a cuidar da criança, o homem saia para caçar, passámos para uma outra fase e ela continuou a cuidar da casa e da família. O que acontece agora? Ela saiu, evoluiu, mas isto traz uma sobrecarga ainda maior e a sociedade tem colocado sobre ela, de forma implícita, a responsabilidade de ser boa mãe, boa esposa, boa tudo e ela se sente responsável também de ser a cuidadora do relacionamento. O que mais recebo no consultório são mulheres que acham que quando o companheiro, por exemplo, entra numa relação e a relação vira disfuncional, há abuso, elas acham que a culpa delas. “Ah, mas se calhar eu não fui capaz, mas se calhar fui eu que o irritei (…)”. Elas se colocam com toda a responsabilidade em cima (…) são elas que chegam à procura de ajuda. “O que é que eu posso fazer para o meu relacionamento melhorar?”

Geralmente é essa a pergunta? E não “Como é que eu posso sair”?

– O que acontece é que durante a terapia começamos a trabalhar principalmente esta parte da autoestima, a desenvolver um bocadinho de amor-próprio e muitas vezes durante o processo, elas acabam por entender que o problema não são elas. O problema está no relacionamento abusivo  e elas não têm a responsabilidade de mudar a relação. Até porque não vão conseguir mudar o outro. Esta é uma das perguntas que eu mais recebo pelas redes sociais e na clínica: “Eu estou num relacionamento, como elas dizem geralmente, tóxico. O que eu posso fazer para melhorar?” E a pergunta e o pedido vêm disfarçados do desejo de que a outra pessoa mude. É um sinal claro de “Eu estou a sofrer e a passar mal, mas eu queria tanto que ele mudasse, porque eu não quero sofrer mais”. Mas perante a perspetiva de como eu posso mudar a pessoa para não sofrer mais e não perder a pessoa que eu amo. E neste ponto ninguém muda ninguém. É importante saber isso.

Na sua experiência clínica, há homens que também “querem salvar a relação”, vamos dizer assim, e acompanham também esse processo terapêutico?

– Sinceramente, não. E inclusive durante o processo terapêutico, pedimos para elas convidarem para uma sessão, elas convidam e eles não vão. Uma das respostas mais comuns que recebemos da parte deles é: “Eu não quero falar com estranhos”. Mas acontece que sempre simpatizamos com a vítima, não é? Eu não quero santificar o abusador, mas ninguém nasce abusador.

Estes homens, vistos como vilões, digamos assim, são também vítimas de uma sociedade e da educação que receberam?

– Totalmente. Ninguém nasce abusador, ninguém nasce abusado. Geralmente, quando vamos ao perfil do abusador, ele tem desenvolvido um modelo de vínculo profundamente inseguro, ou seja, pode ter uma insegurança extrema e uma deficiência emocional. Quando acontece isto? Na primeira infância. E isto acontece muito na sociedade cabo-verdiana no dia a dia, vais ao mercado estás um bocadinho lá e vês crianças e adultos e consegues perceber este exemplo que eu vou dar: Tens uma criança pequenina, bates nela e gritas, mas passado um bocadinho falas que amas esta criança e a criança vai desenvolvendo um modelo de vínculo desorganizado ou inseguro. O que é isso? A pessoa que me bate, ou seja, a pessoa da qual eu sinto medo é a mesma pessoa que fala, que me ama. Quando a criança cresce o que acontece? A criança continua a achar que isso é amor. Porque o amor é assim. Eu falo que te amo, mas bato, grito contigo, mas eu te amo. Ou por lado, a desvalorização. Dizem: “Tu não sabes fazer nada bem. O desenho que fizeste está feio. Agora não tenho tempo para ti”. Mas a criança vê o adulto que continua com a vida dela, cuidando dele. Então ela vai integrando esse modelo de estabelecer relações, porque aprendemos a nos relacionar pelos padrões que temos na primeira infância. E a criança vai desenvolvendo esse modelo de vínculo e cria um apego inseguro, desorganizado. E acha que é isso o amor. Acredita, há abusadores que acham que amam. Eu bato ou grito contigo, mas eu te amo, cuido de ti, trabalho, dou comida, dinheiro.

Como quebrar estes modelos (…) como construir relações saudáveis?

– Certamente é um desafio e tanto. Há mais profissionais de saúde a usar as redes sociais e outros meios para começar a falar mais sobre o tema. E algumas pessoas acham que o facto de estarmos a falar mais traz uma normalização e não é essa a intenção. A intenção é conseguir consciencializar as pessoas que estamos com um problema e que temos de colocar a atenção nisso, que mais do que aprender, é necessário neste momento desconstruir e é complicado porque são condutas que estão enraizadas numa sociedade, que resultam do patriarcado e que se têm perpetuado há muito tempo. Família atrás de família e de forma simples, são coisas às quais os adultos não dão importância, mas que influenciam o indivíduo depois. Por exemplo, no dia a dia, consegue-se ver claramente como um modelo desorganizado se constrói. Imagina uma festinha onde há também adultos. Quando chegamos com a criança, neste caso um rapaz, a pergunta já não é: Se tens namorada ou quem é a tua namorada? Agora a pergunta é quantas namoradas tens? E a criança fala se tem e o normal é responder que tem várias namoradas. No fundo a mensagem é: não precisas respeitar a tua parceira amorosa. Podes ter várias namoradas e está tudo bem.

E o mesmo comportamento já nem é aplicado às meninas, por exemplo…

– Exatamente.

Mas mesmo na nova geração em pais de 30 e tal anos ainda há esse tipo de educação?

– Em certa medida, do que eu tenho recebido no meu consultório, as mães, porque o que eu mais recebo são mulheres, continuo a enfatizar isso e acho que é um tabu que precisamos quebrar. Há mães que estão preocupadas (em desconstruir). Muitas delas chegam no consultório por problemas no relacionamento e já estão consciencializadas e dizem: Mas eu não quero que ela (a criança) veja esse modelo, que cresça ouvindo o pai a gritar comigo. Acredito que sim, que está a acontecer uma mudança nesta nova geração, mas é aos poucos. Recordo que estas famílias onde a mãe tem 20 e tal, 30 anos, quase sempre tem de recorrer aos avós para durante o horário de trabalho tomarem conta da criança. A criança não está só sob a influência desta mãe da nova geração, continua sobre a influência social e de gerações anteriores.

 

 

 
 
 
 
 
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E voltando à questão dos relacionamentos, como sair de uma relação abusiva? É possível sair antes que se passe à fase da violência e da agressão física? 

– Sim, é possível. O primeiro passo é identificar e assumir. Por causa da sociedade na qual estamos inseridos muitas vezes não assumimos que estamos num relacionamento abusivo, ou por vergonha, outras vezes por medo. O primeiro passo seria identificar os sinais de controlo iniciais e assumir que sim aqui há ‘bandeiras vermelhas’ de que isto pode ser um relacionamento abusivo. Sem partimos para a agressão física. Como se dá o ciclo da violência? Geralmente é depois de cada um destes surtos emocionais, onde o abusador começa a controlar subtilmente a pessoa, o abusado, aos poucos, que é uma pessoa que já tipificamos com uma autoestima um bocadinho baixa e começa a normalizar estas condutas, a se acomodar nesse desconforto. E aí, cada vez que temos um evento de abuso, geralmente há um atrito dentro da relação, uma briga ou uma discussão, passamos para a segunda fase, que é uma fase de manipulação também, quando o abusador percebe que está a perder o controlo sobre a outra pessoa, que a outra pessoa se rebela, protesta, reclama, se impõe, passamos à lua-de-mel, é meio que uma forma de manipulação emocional também. Quando ele percebe que ela está a tentar se posicionar, ele passa para lua-de-mel, promete que vai mudar, promete que não vai acontecer de novo, pede desculpas e aí a vítima, geralmente, acredita no abusador. Só que depois de cada um destes ciclos, que se repetem todas as vezes que a vítima perdoa, a vítima fica cada vez mais fragilizada, com a autoestima mais abalada. Ela já se afastou dos familiares, de certas amigas porque o abusador não permite ou não gosta. (…) E ainda o meio (familiar) vai se afastando da vítima. “Ahn, mas ela está aí porque gosta. Porque ela não sai da relação?” Não gosta, a pessoa começa a ficar sem recursos e a ter abalos a nível emocional e psicológico, onde ela não se sente capaz. Quando a pessoa já se habituou e olha à volta e diz: “Os relacionamentos são mesmo assim, eu vou ficar aqui”. Todas aquelas crenças e ditados populares nos submetem a permanecer. É possível sair? É possível. Quando os familiares e amigos identificam que a pessoa se afasta e se isola por causa de um relacionamento abusivo, por favor, não devem se afastar, porque leva tempo até a pessoa perceber, até que uma pessoa chegue de fora, uma dessas pessoas que ela rejeitou em algum momento ou afastou, e pegar na mão e dizer: “Vamos procurar ajuda?” É possível sair, mas custa e custa por causa de como se dá o ciclo porque cada vez mais a pessoa fica mais fragilizada, sentindo-se mais incapaz.

Nos casos que acompanhas, os homens geralmente não vão, mas os homens individualmente procuram apoio? Sem serem ‘levados’ pelas companheiras?

– Certamente os homens que tenho recebido em clínica, há uma percentagem muito baixa que vai por causa de estarem em estado de dependência emocional. Há outra percentagem que procura ajuda profissional, por causa de disfunções sexuais. “Eu estou a ter esta conduta. Eu não queria perder a minha companheira ou eu queria trabalhar no que está a acontecer”. Os homens estão fechados para o tema.

Mas acredita que isto acontece por causa da sociedade machista?

– Sim, totalmente da sociedade machista (…) Na minha experiência, os homens não procuram ajuda por estas causas (por causa de relacionamentos). Eles me procuram pela parte da sexologia.

Mas a parte da sexologia também está ligada a tudo o que estamos a falar?

– Claro. Nenhum bloqueio sexual é puramente sexual, a não ser que tenhamos um problema orgânico. Geralmente estes bloqueios estão ligados a um problema na relação, a uma causa emocional. Se o relacionamento não vai bem, é comum ter disfunções eréteis, ejaculações precoces. Acho que por causa da sociedade e de tantos tabus, principalmente dessa ideia de que se vou entrar num consultório de psicologia é porque estou doido, as pessoas não procuram ajuda. E eu costumo dizer isso que se há uma área onde é preciso procurar ajuda é na área de relacionamentos porque nos ensinam matemática, ética, ciências, mas ninguém nos ensina a nos relacionar com os outros. Vamos repetindo os padrões que vemos na infância e, infelizmente, os padrões da infância e na sociedade não são os modelos ideais a seguir. Há muitas famílias com alcoolismo, com violência intrafamiliar e crescemos perpetuando isso (…)

Se só as mulheres é que procuram ajuda, buscando a relação ideal e tentando consertar o outro, acaba por ser uma utopia transformar uma relação abusiva numa relação saudável, se quem procura ajuda é só a mulher…

– Se quem procura ajuda, só é a mulher, que é geralmente a parte abusada, não há como transformar um relacionamento abusivo numa relação saudável. (…)

Mas existe forma de o fazer …

– Se os dois estiverem de acordo em trabalhar os problemas de forma individual e trazer estas mudanças para o relacionamento, é possível transformar. É fácil? Não. É possível. Mas nessa sociedade fica um pouco utópico. Até porque se são elas que procuram ajuda tentando mudar o outro e o outro não tem interesse nenhum em mudar. Um relacionamento é sempre feito como o mínimo, de dois. Tem que estar as duas pessoas implicadas no processo de autorreconhecimento, de trabalhar as mágoas, os traumas, aquela mochilinha emocional que todos carregamos e trazemos para a relação. Porque todos nós chegamos no relacionamento, cada um com sua bagagem. Aí, se eles estiverem implicados no processo da mudança, pode acontecer sim, mas é preciso o compromisso do dois. E é desafiador nesta sociedade.

Da sua experiência clínica, essas mulheres saem das relações ou perpetuam o ciclo?

– Algumas saem, algumas perpetuam o ciclo. Outras saem e começam a trabalhar a sua autoestima e o amor-próprio e entram num relacionamento sem estarem prontas e repetem o ciclo.

Mas tem exemplos de pessoas que depois conseguiram construir relações saudáveis?

– Sim, temos pessoas que conseguiram construir uma nova relação saudável, mas principalmente porque aprenderam a se relacionar saudavelmente consigo mesmas. E quando tens essa falta afetiva preenchida por ti, já quando escolhas, avalias antes, consegues delinear o que não vai ser mais negociável na tua vida e no momento de fortalecer a tua autoestima, percebes que és capaz de dar e tomar conta de ti, da tua vida, da área financeira, da área afetiva, da área relacional. Daí a importância de fortalecer todas as relações de amor e não só com uma pessoa, porque estas outras pessoas também preenchem o vazio afetivo. Quando se trabalha a autoestima, a autoconfiança, o amor próprio e estão prontas, conseguem desenvolver um relacionamento de modo saudável. As relações não saudáveis, abusivas, tóxicas, elas estão cheias de carência emocional, de fragilidades emocionais de ambos os lados. E quando há uma pessoa que exerce o controlo sobre a outra, por exemplo, o abusador: que eu já expliquei, que desenvolve um vínculo inseguro, desorganizado. Na idade adulta se torna abusador porque desenvolve a ilusão de que se tem o controlo sobre tudo, vai-se poupar de todo o sofrimento, a confusão que teve antes na infância. Esse é o modelo que faz com que ele tente controlar tudo. Ele exerce o controlo também na relação.

Existem mulheres que também estão nessa posição de abusador?

– Sim.

Mas é menos comum?

– Já tive um caso clínico em que o rapaz é que procurou ajuda, era o abusado. Não há agressão física. Ela não agredia fisicamente, mas conseguia manipular as suas emoções e sabe como fazê-lo muito bem. Mas no fundo ela estava a salvaguardar-se. Não sabemos qual foi a sua história com relacionamentos anteriores ou na infância, mas ela exercia o controlo sobre ele. Através do telemóvel, exigia a senha do móvel, a conta bancária. Cada detalhe, cada movimento, onde está, com quem está, pedia prints.

Portanto, independentemente do género, tanto homens como mulheres, podem ser tanto abusadores como vítimas? Apesar de ser mais comum os homens serem abusadores e as mulheres vítimas.

– Está relacionado com o psicológico, com a experiência vivida pela pessoa na infância que faz com que ela se volte para este momento na idade adulta.

Já vimos que numa sociedade como a nossa, os homens acabam por se transformar em abusadores por causa da primeira infância e da forma como são educados…

– E eles acabam por normalizar o abuso também por causa disso: (pela forma) como foram educados, o que ouviram da mãe, e no final repetem os padrões dos progenitores. E é interessante porque muitas vezes, recebo mulheres que quando entrámos na história de vida contam que o pai era alcoólatra. E eu digo, tudo bem … é a realidade que elas conhecem e de forma inconsciente o cérebro faz que nos sintamos mais confortáveis naquilo que conhecemos e acabamos repetindo o padrão. Só que quando cai a ficha elas dizem: “Algo não está certo. Eu vi isso na minha casa, disse que estava mal, prometi que não ia permitir e a final”.

E para quebrar o padrão é preciso estar consciente …

– Primeiro ter consciência, acho que depois desta entrevista vou divulgar mais os sinais de relacionamento abusivo, principalmente os sinais subtis, os que representam abuso e controlo sem chegar ao abuso físico.

Estamos a falar de mulheres de classe média, mas quando falamos de mulheres que não têm um rendimento fixo ou têm um rendimento baixo, as situações podem tornar-se mais complicadas?

– Sim, porque aí estamos a falar de uma incapacidade real, a incapacidade de assegurar sozinhas a estabilidade financeira dos filhos, então ficam a depender do parceiro ou dos pais dos filhos e a aceitar imposições por causa da dependência financeira deles, aí a autoestima fica mais abalada.

A nível social estamos a mudar ou continuamos a perpetuar estes ciclos? Se a mudança vai depender só das mulheres que procuram ajuda …

– Acredito que pequenos passos estão a ser dados. Os filhos e filhas destas mulheres que estão à procura de ajuda já vão ser diferentes. E também as instituições públicas têm feito uma sensibilização e divulgação muito importante. O ICIEG tem estado a falar muito sobre igualdade de género e quando falamos disso incluímos todas estas formas de violência, de prevenção, números para ligação, identificação de situações de violência. Temos uma herança histórica perpetuada por muito tempo que vai ser difícil de quebrar. Neste ponto é importante falarmos da palavra ‘desaprender’, que é mais difícil do que aprender. Por exemplo, muitos homens falam “Eu não sou machista”, mas foram educados por uma mãe da época que fazia tudo por ele e ele aprendeu que não era machista, mas chega do trabalho e espera que a mulher prepare um prato porque tem subentendido que a mulher que tem de fazer o jantar ou cuidar dos filhos. Estamos a dar passos, mas há uma herança histórica que perpetuou certas condutas que precisam de ser ‘desaprendidas’ e isso vai demorar mais um tempo e, por outro lado, muito esforço para falar, divulgar sobre o tema.

Outro aspeto salientado pela especialista é que por a sociedade cabo-verdiana ser muito classicista se escondem casos de agressão contra a mulher com famílias a fazer pressão para que as mulheres fiquem com os maridos com medo da exposição social.

A especialista salienta que existe uma diferença entre as relações disfuncionais, onde há problemas de comunicação, de organização financeira por exemplo, e uma relação abusiva. Sendo que uma relação disfuncional pode ser trabalhada.

Natural de Cuba, Sandra Perez reside e trabalha há 7 anos em Cabo Verde. É psicóloga clínica, sexóloga e terapeuta.

  • Comportamentos controladores onde há evolução rápida da relação, já quer namorar no primeiro dia;
  • Sensibilidade excessiva, pessoa fica ofendida muito facilmente e pode partir para a agressão;
  • Pessoas que revelam conduta cruel com animais ou crianças;
  • Pessoas com verborreia e pessoas que usam muitos palavrões;
  • Pessoas com historial de abuso no passado. Pessoa ‘pinta’ o parceiro anterior de culpado, de louco;
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