A Luz apagou a escuridão

O caminho que Cabo Verde ainda tem de trilhar até alcançar o status de país desenvolvido não só é longo como também requer um enorme esforço em termos de recursos, em especial dos financeiros, que são escassos, e dos humanos, que ainda careçam de uma maior e melhor especialização em áreas estruturantes como as ciências e tecnologias. Mas, convenhamos, em pouco menos de meio século de existência, este pequeno país conseguiu dar passos de gigante em muitos aspetos.

Somos um povo, acima de resistente, resiliente. O povo a quem as cabras ensinaram a comer pedras para não perecer.  Povo que pediu, suplicou e chorou, atirando-se ao chão e prendendo nas mãos convulsas, ervas e pedras de sangue, rejeitando-se ir para Pasárgada. Os Flagelados do Vento Leste lutando Contra Mar e Vento. 

É nesta perspetiva que hoje eu quero falar um pouco de claridade. Não que eu queira abordar aqui o movimento intelectual (Claridoso) que, na década de 1930, a partir da cidade do Mindelo, lançou as sementes do modernismo em Cabo Verde. Isso seria muita manga para conversa e, portanto, tema de outros fóruns que não uma crónica.  

Assim, é meu objetivo cronicar um pouco sobre os efeitos da chegada da eletricidade aos confins dos vales encravados da ilha de Santo Antão, na segunda metade da década de noventa, período que marcou a revolução de um estilo de vida “aldeã” e o lançar das sementes que vieram, paulatinamente, a germinar em maior conforto e qualidade de vida nas inúmeras aldeias recônditas, em especial, no concelho da Ribeira Grande.  

Até então, pouco depois do cambar do sol no horizonte, a noite caracterizava-se por um completo mergulho das aldeias na escuridão. Não se conseguia descortinar o próximo passo a dar nos caminhos falsos, se não se fizesse acompanhar por uma lâmpada a pilhas ou do alumiar de uma cafuca alimentada a petróleo. 

No breu completo da noite, a imaginação e o folclore local davam vida a criaturas do além. Maçongos, cachorronas, canelinhas, mulherzinhas, bruxas e tantos outros seres míticos faziam-nos tremer só de passar nos caboucos nas horas minguadas. O simples rachar de um tronco de bananeira aquando de dar à luz a um cacho, era suficiente para nos fazer arrepiar os pelos do corpo todo e desatar-se a correr aos gritos. 

Eu, particularmente, nunca vi nenhuma dessas criaturas, mas, ainda assim, sempre pelei de medo só de ouvir falar nelas. Mesmo nos saraus das noites de luar, depois de escutar, atentamente, as estórias de nha Chica Guida, acerca de homens trajando fato branco, que percorriam os caminhos em cima de cavalo branco, ou mulherzinhas que, por penitência divina, acalentavam nenés enquanto preparavam milho no pilão ou lavavam roupas nas selhas da casa de alguém, tremia que nem vara verde.

 A minha tenra mente de menino inocente tinha a habilidade de ver no formato das sombras das plantas as criaturas dos contos de nha Chica Guida. Eu era incapaz de percorrer sozinho os escassos metros que separavam a cozinha de lenha da minha avó do quarto de dormir. O escuro e o medo dominavam-me. Graças a luz e o tempo, perdi boa parte do medo, mas, quanto as criaturas… “no creo en brujas, pero que las hay, las hay”!

Sim, foi a luz (entende-se eletricidade) que matou as criaturas do nosso folclore! Ao que parece, essas simplesmente desapareceram com a chegada da eletricidade, tal qual as pulguinhas que infestavam os currais de trapiche e os pés dos pobres transeuntes, e que, de um dia para outro, foram para nunca mais. No caso das criaturas do nosso folclore, para além da iluminação pública dos caminhos vicinais e caboucos, temos de ter em consideração a chegada da caixinha mágica, a televisão. 

A televisão fez chegar às nossas casas os desenhos animados e as telenovelas, os quais vieram rivalizar com o tempo livre para as estórias e contos. Ainda que, nesses primórdios da eletricidade e televisão nas zonas recônditas, o sinal que se recebia era apenas da TNCV (das 18h00 às 24h00) e, pouco depois, da RTP África. Sinal esse que se conseguia girando a antena inúmeras vezes ou mesmo trocando-a de lugar, na esperança de conseguir um sinal o mais limpo possível. (“Girá entena mes um b’cadim! Txal assim!!! Adesh, jal fca pior. Sô ereia!”)

Outro impacto que a eletricidade teve no quotidiano dos vales e aldeias recônditas de Santo Antão foi na matança de porco (txuk). Até então, sempre que se matava um porco, a única forma de conserva possível era a salga da carne. Não de toda a carne, visto que existia o costume de, entre familiares e vizinhos, troca de prato (uma parte de carne e outra de toucinho). Esta tarefa ficava para os mais pequenos, que iam de casa em casa entregando as trouxas. 

Era uma prática que reforçava os laços de partilha e união, tanto que, sempre que se ouvia o berrar de um porco pela madrugada, nalguma casa vizinha, já se poderia contar com um cozido de carne de porco fresca ao almoço. Todavia, a eletricidade e a melhoria das condições de vida vieram permitir as famílias ter em casas frigoríficos ou arcas frigóricas, os quais permitem armazenar grandes quantidades de carne, por um longo período. Assim, hoje, praticamente o costume de partilha de carne de porco entre vizinhos e familiares praticamente já não existe. 

Ainda bem que a luz “apagou” a escuridão, tirando-nos do obscurantismo de séculos e melhorando consideravelmente o nosso estilo de vida nos recantos da ilha das montanhas. Mas, por favor, não deixemos que o estilo de vida moderno apague de vez os nossos usos e costumes. A cultura de um povo é essencial para preservar a sua origem, afirmar a sua identidade e espírito de pertença a uma região. Que haja mais luz na cafuca de cada um! 

Socram d’Arievilo 

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Socram d'Arievilo

Socram d'Arievilo

É natural da ilha das montanhas, lugar que preenche o seu imaginário e que serve de cenário para as suas criações. Na literatura, a sua preferência recai sobre a poesia, mas também interessam-lhe os géneros contos tradicionais e ficção científica.

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