A Teoria do Rukutidu

Uma crónica da Cleo Garcia Freire.

– Sai da minha cozinha. Repito! Vai dar ordens lá na tua casa!

– Mamã, estas panelas e frigideiras estão velhas demais!, para quê guardá-las? Eu não entendo mesmo o porquê de gostares tanto de guardar coisas velhas.

– Djam flabu: vai dar ordens na tua casa. Quando eu morrer, podem fazer o que quiserem. Mas enquanto eu estiver viva eu é que mando na minha cozinha e na minha casa.

Esse diálogo que vindo da cozinha ecoava por toda casa, atravessara a sala e foi encontrar na varanda, onde tranquilamente cuidava do meu próprio assunto, os meus ouvidos. Na cozinha, determinada, tentava a minha mãe convencer a minha avó a desvencilhar-se das coisas segundo ela, velhas. E sugeria conservar a avó apenas as novas ou pelo menos, as mais recentes. Concordando com ela, resoluta, atravessei a sala de jantar em direção da cozinha para dar o meu não solicitado contributo; e, parada sobre o batente da porta que dava acesso à cozinha disse:

– Avó, é verdade. Estas panelas estão realmente velhas. Pamodi ki …

– Sai di li bu dexa di trivimento! Bu txomadu?! – dissera a minha avó com o seu olhar ameaçador em direção da minha cabeça, “somada” para melhor dar fé dentro da cozinha e emitir a minha dispensável opinião.

Mais do que isso não foi necessário ser dito. Voltei imediatamente para a varanda de onde nunca deveria ter saído; e onde tendo na mão o CD da Toni Braxton – tomado de emprestado já não me lembro de quem – tentava decorar a letra da música Un-Break My Heart; para depois obrigar as minhas irmãs gémeas, Branca e Preta, a fazerem-me o coro.

Vinte e mais alguns anos passados desse episódio, lembrei-me disso quando há dias ao lavar a loiça do jantar dou-me conta, pela segunda, de não ter deitado para o lixo a xícara de chá com asa quebrada, nem aquela de borda lascada. Uma e outra fazem parte de um jogo de loiças adquirido há alguns anos; há mais coisa menos coisa uns dezassete anos. O meu primeiro jogo de loiças. Um conjunto de trinta e seis peças, com desenhos decorativos que eram basicamente uns tantos círculos e quadrados; nas cores: vermelha, amarela e laranja sobre o fundo branco. Conjunto colorido e paixão à primeira vista que, na altura, teve como o principal critério de compra, recebido o meu primeiro salário de licenciada, as suas cores vibrantes. Havia-o comprado num desses dias em que a pensar no meu próximo grande projeto – arrendar um apartamento para morar sozinha –, passeava pelas ruas do Plateau a namorar as lojas onde se vendia recheios para casa.

Tantos anos passados daquele dia, foi preciso ter experimentado o meu próprio dilema de ter que me desfazer das minhas “coisas velhas”, para descobrir o motivo de não querer a minha avó, na altura, livrar-se das dela. E ela havia resistido por um motivo simples: assim como as minhas xícaras rukutidas, as suas panelas e frigideiras velhas também tinham histórias para contar.

Como descartar parte da nossa história? Portanto, eu, hoje, sou a minha avó. Fosse hoje, para convencê-la teria provavelmente a minha mãe invocado o Feng Shui e a teoria da energia dos objetos quebrados; ou talves a guru Marie Kondo e a sua teoria do Sparking Joy – apesar de ser-lhe difícil provar o princípio de não trazerem as ditas coisas velhas, alegrias à sua dona. Já eu, sou mais apologista da Kintsugi; a arte japonesa de restaurar com ouro os objetos quebrados. Porém, por ser-me quase impossível obter misturas feitas com pó de ouro, prata, bronze, latão ou cobre, decidi criar a minha própria teoria. O Rukutido. A teoria de não deitar para o lixo panelas, frigideiras ou xícaras que contam histórias.

 

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Cleo Garcia Freire

Cleo Garcia Freire

Sou uma amante da música e das letras e apaixonada pelos pequenos presentes da vida:
uma caneca de café quente; o cheiro do pão acabado de sair de forno; brisa do mar e
outras gotas de felicidade.

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