Cash or Body, Prostituição e Crack: A morte de uma geração

Sou encenador e dramaturgo e ao longo dos últimos 10 anos, as minhas intervenções artísticas têm sido fundamentadas por pesquisas etnográficas realizadas junto de diferentes comunidades cabo-verdianas.

Por residir no Mindelo, tenho a cidade do Porto Grande como a minha principal fonte de inspiração. Passo horas observando o dia-a-dia do povo de São Vicente. Costumo fazer longas caminhadas pelos diferentes bairros da cidade num “tma boné” que serve de base para os meus espetáculos. Destas observações surgiram aspirações para espetáculos como “Once Upon a Time in Ribeira Bote” que celebra as gentes e a história da zona libertada, “Rua de boné” o maior sucesso de bilheteira no Mindelo, dos últimos 10 anos e “Font Flip is Burning”, o espetáculo mais visto na cidade em 2022.

Nos últimos anos, e derivado das minhas observações, tenho notado o aumento de um fenómeno na cidade que me tem perturbado. Falo do aumento do uso das drogas nas camadas mais jovens, com maior enfase no uso do crack, mais conhecido no Mindelo por pedra.

Devido aos meus estudos tenho vivido entre Lisboa e Mindelo e sempre que regresso ao Mindelo é desconcertante observar que o número de jovens prisioneiros desta substância tende a aumentar e que escasseiam medidas para solucionar este problema.

Com o objetivo de compreender o fenómeno da prostituição que abala o bairro da Ribeira Bote, propus-me a observar o funcionamento do “sistema de café” outro problema social que abala a nossa ilha. Mal sabia eu que a prostituição no Mindelo está diretamente ligada ao consumo de drogas.

Na rotunda da Ribeira Bote, a prostituição, funciona no período pós-laboral. Assim que o sol se põe, as meninas, a maioria com idades entre os 16 e os 26 anos, começam o seu passeio pela Avenida 12 de Setembro, num bate pernas que se estende até à Rua de Coco. São jovens e adolescentes provenientes de vários bairros da cidade que se aglomeram na rotunda da Ribeira Bote e que durante a noite percorrem a avenida à procura de fregueses. Ultimamente, algumas travestis e rapazes homossexuais têm frequentado a avenida , mas em número reduzido.

Para conseguirem fregueses, elas abordam os carros que circulam por ali para apresentar os seus serviços. Muitas delas passam as noites ao relento sem sucesso e acabam voltando para casa de madrugada com os bolsos vazios. Às vezes, conseguem arranjar clientes. Estes param à beira da estrada, as meninas aproximam-se e acertam o valor do serviço antes de entrarem nos carros que partem rumo ao local, onde o ato será consumado, para mais tarde devolver as passageiras ao ponto de partida.

O que realmente me surpreendeu foi descobrir o que se sucede após a consumação do ato libidinoso. Percebi-me que após regressarem ao ponto de concentração as concubinas dirigiam-se todas ao mesmo local, uma esquina que ficava fora do meu campo de visão. Durante o período que andei a observar a movimentação na rotunda, mantive-me sempre afastado e em segurança, mas para ter uma visão mais completa da realidade seria necessário percorrer os becos escuros durante a noite. Já sabia que a droga circulava por aqueles lados. Entre o pavor da droga e o medo do “Cash or Body” arrisquei-me a percorrer esses becos na madrugada.

Deparei-me com uma cena deplorável. Dei algumas voltas pelos quarteirões e logo consegui identificar três bocas de fumo. As jovens que passavam a noite no relento na esperança de conseguirem vender o seu corpo andavam naquele desespero para conseguir arranjar dinheiro para comprar drogas e assim sustentar o seu vício. Os três pontos da droga encontram-se distribuídos a volta da retunda de Ribeira Bote mias especificamente nas três principais ruas que afluem dessa retunda. Qualquer um que se atreva a percorrer o bairro da Ribeira Bote durante a noite consegue identificar os pontos da droga com facilidade, pois estes, funcionam a vista de todos como se fosse a coisa mais natural. Não compreendo como é que a polícia não identifica e encerra os mesmos.

Durante as semanas que se sucederam pude verificar que a movimentação era sempre a mesma, arranjar clientes, receber, ir comprar drogas. Posso afirmar que em grande parte a prostituição no Mindelo está diretamente ligada ao uso das drogas. Existem outros tipos de prostituição no país, mas a que mais afeta as comunidades em São Vicente, é derivada do uso destas substâncias ilícitas.

500 escudos. Este é o valor de uma dose de pedra. As jovens que se prostituem na rotunda da Ribeira Bote cobram quinhentos escudos. No Mindelo, o corpo de uma mulher vale menos do que uma pizza.

Não são apenas as meninas que trabalham na prostituição que frequentam estas bocas de fumo, os rapazes do “Cash or Body” também frequentam estes pontos. Muita da violência que abala a nossa cidade é fruto deste mesmo flagelo.

É triste presenciar a situação em que estes jovens se encontram. Não quero aqui, de forma alguma, culpabilizar estes jovens pela situação em que vivem. Na verdade, eles são vítimas de um sistema que os empurra para esta posição. Ultimamente, nas redes sociais tenho lido vários comentários que pedem intervenção mais rigorosa da polícia. Não acredito que reforçar a atuação da polícia solucione o problema, na verdade isso é limitar-se a combater os efeitos deste problema em vez de atacar as razões que o criam. O que leva os jovens a utilizarem estas drogas pesadas?

Seria fácil recorrer ao discurso das gerações mais velhas que se limitam a colocar as culpas de tudo e mais qualquer coisa nos jovens. Claramente este é um discurso erróneo. Nunca existiu em Cabo Verde uma geração tão qualificada como a minha. Os jovens de hoje têm acesso a informação de uma forma que os nosso país e avós não tiveram. Existem mais licenciados e mestres nas camadas mais jovens do que em qualquer outra geração no país, entretendo são poucos os jovens que encontramos em posições de decisão no país. O desemprego juvenil só tende a aumentar. Muitos jovens procuram na emigração as oportunidades que não encontram no país. Se os jovens capacitados não conseguem encontrar emprego no país, o que será daqueles provenientes das camadas mais desfavorecidas que nem sequer tiveram acesso ao ensino superior?

Os jovens em Cabo Verde estão frustrados, desmotivados e sem esperanças para o futuro. Talvez por isso, as drogas pareçam ser tão reconfortantes. Não tenho dados suficientes para apoiar esta teoria, só sei que ao abordar alguns dos jovens que vivem em situações de risco eles falam de frustrações, de sonhos abandonados e de um futuro que lhes foi negado.

Para aqueles que se limitam a ficar nas redes sociais criticando os jovens, lembrem-se, os jovens não decidem nada neste país, apenas sofrem com as consequências das decisões tomadas pelas gerações mais velhas.

Os nossos jovens estão a morrer nas ruas devido ao vício. Roubam e prostituem-se para sustentar este vício. Como é que permitimos que se chegasse a este ponto? O que estamos a fazer para proteger os nossos jovens?

Acredito que as camadas jovens sejam o espelho da sociedade, mas infelizmente a sociedade cabo-verdiana falhou com a minha geração.

Enquanto artista só posso utilizar os meus espetáculos e os meus textos para denunciar esta situação. Sou um jovem de 28 anos, residente na Ribeira Bote, licenciado, mestre e a frequentar um doutoramento, infelizmente não tenho poder de decisão. Os meus colegas, jovens como eu, formados como eu, também não têm poder de decisão. Nós não conseguimos implementar medidas para fazer frente a essa situação. Somos obrigados a assistir enquanto a nossa geração perde a luta contra as drogas.

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Nick Fortes

Nick Fortes

Investigador, produtor cultural, ator, encenador, dramaturgo e ativista. Doutorando em Comunicação, Cultura e Artes pela Universidade do Algarve, Mestre em Artes Cénicas pela Universidade Nova de Lisboa e Licenciado em Marketing pelo ISCEE.

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