
Sábado, 23 de Setembro, 2023
Ao escrever estas linhas o meu coração começa a acelerar e a ficar menor. Sinto a garganta a estreitar-se. Não por causa da dor da perda, mas por ser algo importante para mim escrever estas linhas, de pôr no “papel” algo que me é tão caro e que tem definido a minha vida recente.
A escrita sempre foi importante para mim, tenho vários diários que me acompanham desde a adolescência, os quais de tempos em tempos revisito e surpreendo-me com o que lá encontro.
Levei meses para conseguir escrever no meu diário que a Érica tinha falecido. Para mim a sua morte só se tornaria real no dia em que eu a reduzisse a escrito. Custou-me imenso pegar na caneta e escrever. Fi-lo e sobrevivi.
Foi um longo processo de luto, de cura interna para que hoje eu pudesse estar aqui, perante vós, de coração leve e aberto, falando sobre algo tão íntimo meu.
Há já algum tempo decidi que um dia escreveria sobre o que a Érica significa para mim, como foi ultrapassar a sua morte, de como me encontrei depois da sua partida.
Fui protelando pois não sabia o que escrever, qual seria a melhor abordagem a este tema e como tornar leve o que tenho para dizer. Passaram-me diversas coisas pela cabeça e hoje na minha caminhada matinal decidi que iria abordar a perda da Érica e tudo o que daí adveio como uma manifestação do amor de Deus por mim e pelos meus.
Não ouso falar da Érica e do que os outros sentiram por ela, pois não tenho legitimidade para tal. Apenas posso ser testemunha de que as pessoas que connosco conviveram durante a sua curta vida (somente seis meses) demonstraram muito carinho por ela, mas não posso testemunhar o efeito interno que ela teve neles.
A Érica faleceu, realmente, no dia que iria completar seis meses de vida. De vez em quando penso que foi pouco, isso acontece quando por breves momentos a saudade vem com força e digo que foi muito pouco, que devíamos ter tido mais tempo. Mas na maior parte das vezes sei que foi o tempo necessário. O tempo necessário para que as nossas vidas fossem transformadas (pela felicidade com o seu nascimento, pela dor com o seu falecimento, pela gratidão por ela ter existido) de formas que ainda estamos a descobrir.
Olhando para trás não consigo deixar de sorrir ao constatar que a vida nos prega cada surpresa e que tem a capacidade de nos tornar humildes à força. Quase nada do que nos acontece é por nós condicionado. A perda da Érica foi motivada por uma fatalidade, por uns escassos segundos uma vida foi ceifada e algumas outras foram marcadas de formas que não podemos de todo alcançar.
Hoje ao pensar nela e no que aconteceu consolido que a forma como eu e a minha família decidimos encarar o sucedido – na vida acidentes acontecem e não podemos permitir que eles condicionem de forma negativa o futuro – foi a correta. Para quê tornar pior algo mau? Apegarmos ao que de bom aconteceu e manter viva essa memória foi o nosso segredo. E acredito piamente que tem de ser esta a forma de encarar a vida.
E aqui entra o que acima referi, de que a vida e a morte da Érica foi uma manifestação do amor de Deus por mim e pelos meus. Recentemente, pouco mais de um ano, resolvi dar o primeiro passo de me tornar íntima de Deus e conhecer a Sua Palavra. E tem sido desafiante pois obriga-me a abandonar crenças e “verdades” que sempre estiveram no leme da minha vida. Tem sido um caminho acidentado, mas incrivelmente satisfatório. Tem-me aberto os olhos e o coração para realidades que dantes me passavam despercebidas, tem-me permitido aprofundar relações humanas que têm sido de grande valor e às quais pretendo investir mais. E tal só foi possível pelo caminho pessoal percorrido desde a morte da minha bebé. Buscar Deus tem-me permitido questionar tudo e abre-me uma infinidade de possibilidades que me tem deixado inquieta e curiosa de continuar nesse caminho.
Conhecendo-me como conheço não posso ignorar que não fosse o choque da perda da minha filha e a recuperação dessa perda não teria energia, vontade e capacidade de levar a cabo a mudança de vida que venho fazendo no último ano e meio.
É verdade que fiquei sem ela fisicamente, que sinto muito a sua falta, que gostaria muito de a ver crescer, mas não é menos verdade que só perdemos aquilo que alguma vez tivemos e eu tive a Érica. Pude ser mãe dela, cheirá-la, amamentá-la, amá-la porque tal me foi permitido por Deus. Tal foi o meu amor por ela que focar na sua partida seria um desmerecimento pela dádiva que me foi dada. Como é desmerecimento pela sua vida não conseguir ver os frutos que colhi e irei colher por ter tido a experiência de ser mãe dela, da nossa família ter sido um dia completa com a sua chegada.
Como posso deixar que a saudade dela seja mais importante que as memórias e as centenas e centenas de fotos e vídeos dela que temos? Como posso reduzir a vida dela à sua partida? Como ignorar que nos seis meses ela foi muito amada, bem cuidada e foi uma bebé feliz? Como ignorar a felicidade que ela nos fez sentir? Recusei-me a fazê-lo e ainda bem que assim fiz. O amor merece ser celebrado e partilhado.
A maior declaração de amor que posso fazer à minha filha é ser grata pela sua vida, pelos seis meses que nos foram concedidos e falar do efeito que ela teve em nossas vidas. A Érica será sempre sinónimo de Amor.
Há pouco tempo verbalizei que é complicado saber e assumir que a pior coisa que me aconteceu foi a melhor coisa que me aconteceu. E assumo com todas as letras, perder a Érica foi a melhor coisa que me aconteceu. E fez-me confirmar algumas coisas que já sabia:
i. Que o amor é o mais importante na vida.
ii. Que não são apenas as coisas que duram muito que são valiosas.
iii. Que não nos devemos apegar demasiado à dor. Ela é importante para um curto espaço de tempo.
iv. Que não faz mal não sentirmos aquilo que era suposto sentir.
v. Que reconhecermos os nossos sentimentos e acolhê-los é o melhor caminho.
vi. Que a saudade significa que algo nos marcou.
vii. Que quem mora em nós nunca morre.
Sei que a saudade da Érica será uma constante na minha vida e isso não me pesa, é até reconfortante, pois é sinal de que nunca esquecerei o amor que nutro e nutrirei por ela. Acreditem quando digo que sempre que falo ou penso nela o meu coração inunda-se de amor, não de dor.
Agradeço a Deus o presente que foi tê-la e poder amá-la, bem como a bênção de ser mãe da Gabriela e Elaine e peço somente sabedoria para a cada momento tomar as melhores decisões no que diz respeito à educação delas.
"Filha, mãe, esposa, advogada. Amiga dos seus amigos. Leal, honesta e direta. Uma apaixonada por música, livros e pela escrita. Amante de uma boa conversa e de aprender coisas novas. Em permanente busca de novos desafios."
Site agregador de notícias e conteúdos próprios e de parceiros, com enfoque em Cabo Verde e na Diáspora, que quer contribuir para uma maior proximidade entre os cabo-verdianos.
+238 357 69 35
geral@balai.cv / comercial@balai.cv / editorial@balai.cv