
A primeira dificuldade que tive foi que a aula era dada em catalão. Eu pensei que iria perceber, mas não captava quase nada. De qualquer forma, não era muito complicado: íamos fazer uns exercícios que consistiam em formarmos grupos de 5 pessoas. Iriamos experimentar as diferentes estações do ano: uma pessoa ficaria no meio, as outras quatro à volta e seguindo as indicações da instrutora, tocaríamos em quem estava no meio como se fôssemos o sol a aquecer-lhe a pele no verão, depois sopraríamos sobre ela como o vento do outono, com as pontas dos dedos imitaríamos as gotas de chuva do inverno e por assim em diante. Eu até estava a gostar um bocadinho, não era tão divertido como as aulas de teatro que já tinha tido, mas era algo diferente e as pessoas eram simpáticas.
Mas a meio desse fingir de estações, quando eu é que estava no meio, senti uma, duas, três vezes as mãos de um dos participantes, um homem na casa dos seus quarenta anos, a passar-me no peito, muito desnecessariamente, demasiadas vezes para ser apenas coincidência ou mau conhecimento da geografia feminina africana. Fiquei desconfortável, fiquei calada, a aula terminou e quando vínhamos para casa, o ajudante de instrutor que me tinha levado perguntou-me o que eu achara da aula e disse-lhe a verdade: que tinha sido boa até sentir que o quarentão estava passar das marcas comigo.
O instrutor perguntou-me então:
– Porque foi que não disseste nada?
– …
– Esta é se calhar, a grande lição que tinhas que aprender com esta aula: as pessoas só te fazem o que lhes permites que façam. Devias ter dito logo alguma coisa, devias ter-lhe pegado na mão e mostrado que não a querias aí.
Esta não é uma lição fácil de aprender, porque depois disso estive várias outras vezes em situações do género, em que era vítima da intromissão de outra pessoa e não reagi. Algumas vezes, foi preciso alguém de fora lembrar-me que não devo deixar que ninguém abuse de mim. E de há uns tempos para cá, uso muito uma frase em inglês para explicar a outras pessoas esse mesmo conceito, para lhes dizer que não devem permitir qualquer forma de abuso. A expressão é It takes two to tango. São precisas duas pessoas para dançar o tango. São precisas duas pessoas para que haja abuso: aquela que abusa e aquela que é abusada (ou às vezes, que se deixa abusar, como eu tantas vezes já deixei).
O abuso acontece de várias formas. Às vezes nem é voluntário: quando estava grávida, a minha médica pediu-me que passasse na maternidade para fazer uma CTG e mostrar-lhe os resultados. Fui lá à hora que ela me indicou, 9h da noite. Fiz a CTG e perguntei pela médica. Fui informada que ela estava lá em cima e que eu devia sentar-me e esperar. Sentei-me um bocadinho, mas era uma noite lenta, não havia quase ninguém à espera e eu não via movimento. Fui perguntar a uma auxiliar se fazia muito tempo que ela não vira a médica. Fazia, sim. Resolvi, de mim para mim, ir lá acima ver se me davam mais informações. Se ela estivesse a fazer uma cesariana, por exemplo, eu iria para casa, já que estava tão tarde. Mas lá em cima o que me disseram é que ela estava no quarto de repouso. E quando ela veio, tinha uma indisfarçável cara de sono. Ela viu-me o exame e mandou-me para casa. E pensei para mim mesma: eu, coitada não vou ser. Não vou ser a coitada ignorante que se senta lá em baixo, porque assim me indicaram, a esperar sem horizonte à vista, enquanto a médica de serviço dorme lá em cima, sem nem saber que tem gestantes à espera.
Já aconteceu de uma senhora querer monopolizar a conversa entre a minha mãe e eu, num café, estando ela numa outra mesa. Ela falou, falou, falou, nós as desta mesa com os pescoços tortos a olhar para ela. Quando trouxeram os nossos pedidos, ela calou-se, à espera. Mas assim que íamos começar a comer, ela pôs-se a falar de novo. Mas aí, eu estava mais em mim, porque lhe disse educadamente:
– A senhora desculpe, mas eu e a minha mãe já não nos vemos há muito tempo e temos coisas para falar.
Não estou a defender ser mal-educada. Mas levamos com muita coisa em nome da educação. Foi em nome da educação que uma vez deixei um primo da minha mãe sentar-me no colo dele, porque não me ocorria dizer que não, ficava mal.
Também ficava mal a uma amiga dizer ao hóspede que ele contribuísse com alguma coisa, já que estava na casa dela, e ele passou lá três semanas, a comer e a beber, sem levar uma única caixa de fósforos como contribuição.
Meus amigos, não me prolongo mais porque também não quero abusar de vocês. Mas lembrem-se, por favor: são precisos dois para dançar o tango!
Escritora, intérprete e tradutora, já trabalhou no privado e no público, recebeu prémios literários, plantou árvores, escreveu livros, participou em antologias e pôs uma bela menina no mundo. Continua a escrever e a gostar do mar.
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