
Sábado, 23 de Setembro, 2023
Nesse artigo, que eu decidi não publicar, debruçava acerca das delações de pessoas que se diziam ter conseguido progredir na carreira graças a expedientes. O objetivo do artigo seria questionar a importância da meritocracia no contexto atual que se vive em Cabo Verde.
Ao mostrar o artigo a alguns amigos estes rapidamente me desencorajaram a publicá-lo. Uma das razões apontada para me desmotivar foi “ix pode pobe na oi”.
A razão pela qual decidi não publicar aquele artigo nada tem a ver com o medo de ser taxado de “inimigo de estimação”. O que me impediu de publicar o artigo foi perceber que os meus pares têm medo de falar abertamente aquilo que pensam por receio de sofrerem algum tipo de represália. Não poderia publicar um artigo de opinião sobre qualquer outro assunto que não fosse a liberdade de expressão ao deparar-me com tal situação.
Na mesma semana em que vários livros foram banidos nas escolas da Flórida, nos Estados Unidos, por irem contra os princípios defendidos pelo atual governador daquele estado, não posso deixar de falar de liberdade de expressão.
Enquanto artista sinto-me na obrigação de utilizar a minha arte para refletir acerca de questões que afetam o quotidiano das ilhas. No dia em que a minha arte deixar de ter essa função será o dia em que procurarei outra ocupação. Nos meus espetáculos, sempre denunciei problemas sociais independentemente de quem pudesse se sentir atacado, continuarei a fazê-lo pois este é o papel da arte. É possível que o teatro tenha um alcance menor do que as plataformas digitais, daí a razão de nunca ter sofrido represálias, entretanto o que escrevo para o Balai não se distancia muito daquilo que escrevo para teatro.
Cabo Verde é um país recente, não se passaram 50 anos desde que alcançamos a nossa independência. Não podemos nos esquecer aqueles que lutaram e deram a sua vida para que hoje pudéssemos expressar livremente as nossas opiniões. Ter medo de exprimir as nossas opiniões e pensamentos é desrespeitar a memória de Amílcar Cabral.
Eu nasci na Ribeira Bote, a zona libertada. Foi aqui que a população se juntou para expulsar as tropas portuguesas após o 25 de abril. Ribeira Bote proclamou a sua Independência antes mesmo do 5 de julho. As gentes deste bairro nunca tiveram medo de falar a sua verdade. Eu acredito que não há nada para se ter medo, aceito que existam pessoas no país que fazem uso de expedientes, mas isso acontece em todo o mundo e não é uma característica ímpar de Cabo Verde. O que não pode acontecer em Cabo Verde é a castração da liberdade de expressão. Somos um país LIVRE fruto da luta revolucionária.
Relembro que em Cabo Verde nunca houve luta armada, alcançamos a nossa liberdade fazendo o uso da palavra. Evoco aqui a memoria do Movimento Claridade e de escritores como Jorge Barbosa, Baltasar Lopes da Silva e Luís Romano que fizeram uso da palavra para proclamar a identidade cabo-verdiana.
Já não vivemos nos tempos da PIDE em que não se podia expressar opiniões de forma livre. Podemos correr o risco de ofender a sensibilidade e o ego de uma ou outra pessoa, mas não pode passar disso.
Assistimos à popularização das fake news e a forma como elas têm sido utilizadas pelos partidos extremistas para manipular a percepção das populações um pouco por todo o mundo. No nosso país isso não acontece… pois não?
Em Cabo Verde a liberdade de expressão é assegurada pela Constituição da República, sendo que qualquer pessoa pode expressar as suas ideias e opiniões fazendo o uso da palavra, da imagem ou de qualquer outro meio, e ninguém pode ser perturbado pelas suas opiniões políticas, filosóficas ou religiosas.
Num país onde os maiores órgãos de comunicação social são geridos pelo estado não é estranho existir a sensação que os media são manipulados pela máquina publica. A precariedade laboral dos jornalistas e a falta de autonomia financeira dos órgãos de comunicação social podem ser apontados como potenciais ameaças à liberdade de imprensa. Entretanto, segundo o relatório anual dos Repórteres Sem Fronteiras divulgado a três de maio, Cabo Verde subiu três posições no Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa passando da 36.ª para a 33.ª posição num total de 180 países.
Cabo Verde é um país que respeita a liberdade de expressão, as pessoas têm direito às suas opiniões. Não vivemos numa ditadura. E a maior prova disso são as intervenções artivistas que se fazem presentes nos teatros e nas redes sociais que através da criação de sátiras e memes criticam e avaliam a intervenção do estado e das instituições publicas.
Para dar resposta à pergunta presente no título deste texto (Mandar ou não mandar bocas?) relembro a célere frase de John Milton:
“Acima de todas as liberdades, dê-me a de saber, de me expressar, de debater com autonomia, de acordo com minha consciência.”
Ps: É importante que exerçamos a nossa liberdade de expressão sem ofender ninguém e sem desrespeitar os segredos de justiça.
Investigador, produtor cultural, ator, encenador, dramaturgo e ativista. Doutorando em Comunicação, Cultura e Artes pela Universidade do Algarve, Mestre em Artes Cénicas pela Universidade Nova de Lisboa e Licenciado em Marketing pelo ISCEE.
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