
Terça-feira, 6 de Junho, 2023
Também estou igualmente sabido que o pensamento-crítico.cv é um voucher-vale para odiozinhos de estimação política, nesta que é uma democracia vulcânica, em que a tal liberdade de expressão e pensamento minimamente confrontador são levados às facas. Persona non grata, é assim que se diz? Mas é isso: silenciar-se ou trair aquilo que me constitui e me move enquanto indivíduo, que assina como cabo-verdiano. Ademais, na impotência de poder, de facto, contribuir para um movimento reacionário em campo, expresso-me através das palavras, pois elas têm vieses igualmente carnais.
Do que estou a falar? Quem não viu, corra a ver – foi devidamente documentada. Vídeos há e a imprensa fez as devidas notas – o primeiro ministro cortou fitinhas na inauguração da primeira etapa de requalificação do Museu do Mar (que por acaso mamou avultados investimentos aos cofres do estado) e que não é mais nem menos do que… a réplica da Torre de Belém.
Eu sei, a manchete, por si só, é de virar lombrigas. No entanto, o que de facto me espicaçou os sentidos…foi o discurso. Coisas em forma de assim:
“Cabo Verde …uma nação com história …e a réplica da Torre de Belém é parte dessa história”; “deve-se transmitir aos jovens a mensagem de ficarem em paz com a nossa história, mas, contá-la por completo”; “o cabo-verdiano não precisa estar à procura de onde vem porque já conhece as suas raízes”
Se não tivesse visto com meus olhos e ouvido com as minhas orelhas, eu juraria tratar-se de alguma cena de uma daquelas séries de ficção científica, de realidades paralelas. Parece! Mas tudo isso é, na verdade, uma violência institucional. Vexaminosa e alarmante, é o que me cabe na boca para dizer.
Com o tanto de movimentos des/de/anti-colonias, tanto material académico, literário artístico, manifestações, revoltas, morte, por todo mundo, que assistimos nos últimos anos…tantos progressos, tantas conquistas… esta é a mensagem endereçada aos jovens e à população cabo-verdiana, em janeiro de 2023? Really?
Erupção cerebral!
Mas olhem, que curioso: não sei se se lembram daquela petição pública sobre a retirada da estátua de Diogo Gomes do Plateau, na ilha de Santiago. Não se lembram? Talvez porque ficou em águas de txitxarinho, e tenha sido, como é aliás muito comum nos dias que correm, um fogo de pavio curto. Mas não são esses os nossos quinhentos, por ora. O analogismo com o caso é super necessário. Aliás, escrevi um texto, publicado aqui também no Balai sobre isso e que vem ao caso autocitar. Nele, reflito sobre o significado simbólico de uma estátua (vulgo monumento, edifícios ou qualquer construção edificada e citada em espaço público) e apresento os motivos pelos quais assinei a petição. Não me considero radicalista, destruição deve ser o último dos recursos, se assim for a vontade do povo. Até porque a retirada seria a nova História sobre a História. E não! Não há perigo de ser esquecida, como muitos temem. Será, pelo contrário, lembrada a partir de uma nova narrativa. Eu, na primeira pessoa do singular, sou a favor da remoção total, para uma das duas as seguintes finalidades – remetê-las ao país das figuras de origem, ou, (apetecivelmente) colocá-las num Museu Nacional da Vergonha – para que que as gentes do presente e do futuro fiquem com a notação mnésica.
Sobre o tal museu (que é na verdade mais um para a conta do quadro geral das políticas culturais destes últimos mandatos, que parece realmente ter uma ânsia museológica, em lugar do factor x humano), eu tenho a seguinte questão: com o tanto que se investiu nessa requalificação, por que razão não refizeram a arquitetura do espaço, a reconfiguraram, a demoveram de qualquer ligação com a tal réplica? A original, edificada entre 1514 e 1519, construída com o propósito de servir tanto como porta de entrada para a cidade de Lisboa, mas também como defesa contra possíveis invasões e ataques a partir do Tejo? Qualquer leitura básica dos manuais de história pode apontar: é imagem de marca do projeto de expatriação-violação-genocídio-pilhagem , disfarçada pelo nome “expansão ultra marítima” porque de “descobrimentos” só tem mesmo a da escrotice eurocêntrica.
Para essa pergunta, penso que a resposta é evidente. Era mesmo um exercício de retórica! Todos sabemos do lacaísmo implícito das interdependências político-económicas que estas atrocidades culturais afagam.
No meio disto tudo, o que mais me aflige é a nossa passividade enquanto coletivo.
Se estes que falam e decidem por nós estão escrevendo as nossas narrativas reforçando os vínculos coloniais, o que sobrará de nós?
Calar-se é consentir!
Art-(v)-ista cabo-verdiano e produtor cultural multidisciplinar. Dissidente. Criador de Futuros.
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