Na minha pele

Uma crónica da Cleo Garcia Freire.
Imagem de vecstock no Freepik

Ele aparecera pouco depois de eu ter-me sentado; na companhia da amiga, com quem havia combinado um café para matar as saudades e um dedo de prosa. Vendo-o aproximar-se, não obstante a sua fisionomia intrigada, abri um sorriso largo; não via há já algum tempo esse meu amigo querido. Porém, o meu sorriso, e os braços abertos num convite a um abraço, não tardariam a ser recolhidos.

– O que te aconteceu? – perguntara.

E, vendo o meu olhar interrogativo, esclareceu:

– Estás velha!

Só então consegui captar a referência aos muitos cabelos brancos. Ultimamente, parece ter sido o meu nome mudado para: “pinta kabelu!”; não se lhes passando pela cabeça, eu não o pintar por gostar dele exatamente como é; e não por desconhecer lojas de produtos cosméticos. Incomoda-me ser a cor do cabelo, mais relevante do que um sorriso amistoso e um abraço caloroso. Incomoda ter a aparência o poder de ofuscar o robustecer da autoconfiança, com a chegada da maturidade.

Contudo, a mim, já nem a proeminência da minha barriga, incomoda. Apesar de ter de confessar que, tendo-se tornado um hábito com o passar do tempo, passei a atentar-me à minha falta de preocupação; ao notar ter tido eu até roubado a velha máxima dos homens barrigudos, dizendo para mim mesma ao passar em frente ao espelho: “uma mulher sem barriga, é uma mulher sem história”.

Enganei-me a mim mesma, até finalmente tratar de despir-me da preguiça e ter começado passados alguns dias “ums” e segundas-feiras a fazer o meu exercício diário. Pela saúde. Não pela aparência. O que seria a velhice, senão um presente da vida? Só não envelhece o físico de quem morre jovem. Eu gostava do meu cabelo quando ele lembrava o céu das noites ausentes de estrelas; e hoje!, parecido com o mar espelho do céu noturno; iluminado por leitosos fios derramados pela lua cheia. Sinto-me bela. Ainda bem que, há muito tempo eu resolvi vestir-me apenas de mim; e sentir-me bem na minha pele.

Foi a minha prenda de aniversário ao completar a idade de Cristo: trinta e três anos. Comecei por rapar o cabelo longo que era a minha mãe em mim. E de seguida, fui-me livrando das outras pessoas habitadas em mim:

Livrei-me do batom cor de vinho, usado todos dias para sair de casa, que era a minha tia em mim;

Livrei-me da vergonha do prazer carnal, que era a minha avó em mim;

Livrei-me da máscara de mulher frágil e púdica, que eram os meus namorados em mim;

Livrei-me do salto agulha, que eram as minhas amigas em mim;

Livrei-me da fidjo fêmea prendada, que era o meu pai mim;

E do medo de expressar o que me vai na alma, que era a voz de toda a sociedade em mim.

Artigo originalmente publicado em: “Antologia Mulheres e Seus Destinos Vol. III” – março de 2023.

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Cleo Garcia Freire

Cleo Garcia Freire

Sou uma amante da música e das letras e apaixonada pelos pequenos presentes da vida:
uma caneca de café quente; o cheiro do pão acabado de sair de forno; brisa do mar e
outras gotas de felicidade.

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