
Sexta-feira, 12 de Agosto, 2022
Se para muitos de nós a transformação digital é encarada como uma “modernice” que tem implicações diversas nas formas como nos constituímos, nos relacionamos, conhecemos e aprendemos, para os nativos digitais, a geração nascida no auge da era da internet, trata-se de um processo normal da vida humana. Podemos dizer que, para a nova geração, não há (haveria) vida sem tecnologia, enquanto para os “dinossauros” da era material ela implica uma mudança radical nas suas vidas.
Assim, é com um certo saudosismo que nos recordamos das nossas vidas antes da era digital e de tudo aquilo que para trás ficou, coisas que dificilmente conseguimos explicar o seu sentido aos miúdos da geração Z (2000-2009) e, pouco mais, aos da geração Alfa (nascidos após 2010). Será que eles sabem que peão e pião são coisas distintas?
Pião, meus meninos, foi um simples brinquedo com o qual éramos capazes de gastar uma tarde toda a nos divertir. Tal qual hoje vocês fazem com os vossos gadgets digitais! Para fazer o pião bastavam-nos um pedaço de madeira (laranjeira, nespereira, cafeeiro, goiabeira…), um prego e um cordel de sisal. As ferramentas utilizadas eram a enchó, a serra, o martelo e o alicate. É provável que nem saibam o que é uma enchó ou um alicate, mas, por agora, tratemos apenas do pião.
Quando eu também era menino, mais ou menos nos finais da década de oitenta/início da década de noventa (Epá, isso foi há muito tempo!), havia um exímio carpinteiro na zona, o Sr. º Antoninho Pavão, a quem o meu avô encomendava os nossos piões, pouco antes do dia de São Miguel Arcanjo. Com esses piões jogávamos no quintal da casa. Mas, o recinto dos jogos grandes era no largo de nha Maria Laura.
Era nesse espaço que os rapazes mais graúdos tiravam o clim. O clim consistia, primeiro, em todos os jogadores jogarem os seus piões simultaneamente e deixá-los rodopiar até cair. A esse rodopiar dos piões chamava-se “dormir”. Assim, o pião que deixasse de rodopiar primeiro, era colocado no chão, a uma boa distância de um buraco, também feito no chão, ficando exposto ao ataque dos bravos piões guerreiros de pico pontiagudo.
Cada jogador atacava, à vez, o pobre pião deitado ou fincado pelo pico numa arena circular, até que alguém conseguisse atirá-lo para fora da arena. Já aí o pião recebia as primeiras refincadas na sua coroa ou na lateral e, se sobrevivesse até sair da arena, os ataques continuavam até levá-lo à cova.
Quando jogados ao chão, os melhores piões roncavam numa espécie de “vrum-vrum”. Um “vrum-vrum” que fazia um suave “zum-zum” nos nossos ouvidos! Os jogadores mais habilitados faziam as suas proezas com os piões. Uns atiravam-nos para o alto e recebiam-nos diretamente na palma da mão, um momento de enorme alegria para a meninada que corria desenfreadamente a ver quem conseguia convencer o jogador a passar-lhe o pião. Tinha quem não conseguisse suportar as doces cócegas que o pião lhe fazia na mão, deixando-o cair ao chão, ainda antes de terminar o giro.
No dia de São Miguel Arcanjo, os “clins” eram mais violentos, com as potentes refincadas a golpear os piões colocados na arena. Tinha também aqueles que arremessavam os seus piões contra as paredes ou para bem longe. Os meninos desatavam a correr, à procura do pião que fosse arremessado. Quem conseguisse encontrá-lo, ficava contente com o seu troféu que exibiria nos jogos dos escalões juniores, que continuavam para lá do dia de São Miguel Arcanjo.
Pico, queimada, São Miguel Arcanjo!
O MEU PIÃO
Roda meu pequeno pião
Pião de laranjeira
Pião de cafeeiro
Pião de goiabeira
Pião pico de guerreiro
Roda ó meu campeão!
Deixa-me enrodilhar-te no cordel de sisal
E com as minhas forças fincar-te no chão
Vem de novo à minha mão
Quero escutar o teu feroz vrum vrum
Que no meu ouvido faz zum zum
Ao som deste teu rodopiar sem
igual!
De mão em mão
De menino em menino
Faz cócegas
Na palma da mão do pequenino
Embala o coração deste anjo
Neste dia de São Miguel Arcanjo!
Socram d’Arievilo, in “Ilhéu de Quimeras”
É natural da ilha das montanhas, lugar que preenche o seu imaginário e que serve de cenário para as suas criações. Na literatura, a sua preferência recai sobre a poesia, mas também interessam-lhe os géneros contos tradicionais e ficção científica.
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