
Quarta-feira, 22 de Março, 2023
Enquanto catraia, em momento algum tive a noção de ser a preferida de um rapaz. Abro aqui um parêntesis para reconhecer que, além dos modestos atributos físicos que me caracterizavam na altura, esta minha personalidade reguila pouco ou nada ajudava. Devo ter sido das poucas raparigas que nunca tiveram um namoradinho de infância, nem mesmo nos tempos do liceu, já adolescente.
Os gaiatos pelo quais me interessava preferiam sempre as minhas amigas, na verdade, preferiam qualquer uma que não eu. Lembro-me de um deles dizer, em tom de brincadeira, que era um insulto pessoal dizer a um rapaz que a Sara estava interessada nele.
Cresci, portanto, com um enorme complexo de feiura, rejeição, inferioridade e desmerecimento. Já adulta, a minha versão pessoal da saga O Patinho Feio conheceu inúmeras temporadas, com um rol de pessoas próximas a serem preferidas, enquanto eu era preterida over and over and over again. Mesmo nos tempos académicos, eu era aquela que nunca era escolhida para integrar os grupos de trabalhos. Até provar que era capaz de tirar boas notas, só era incluída mediante imposição expressa dos docentes.
O trauma atingiu tal proporção que cheguei ao ponto de recusar sair para a night na companhia de amigas mais vistosas do que eu. Houve uma em particular, a Natalie, que pela sua beleza estonteante acabava, ainda que sem intenção, por semanalmente me fazer reviver o pesadelo. De todas as vezes em que saímos juntas, o sentimento predominante era o mesmo de sempre: o patinho feio continuava a habitar em mim.
A baixa autoestima acompanhou-me praticamente a vida toda, precisamente por ter sido sempre preterida, a começar pela minha própria família, que nunca fez questão de me fazer sentir que pertencia àquele agregado, a começar pelo facto de o meu tom de pele ser diferente. Acredites ou não, na minha infância fui marginalizada, ostracizada até, por ser a mais “branquinha” do clã. Ouvi de tudo um pouco, “branca mo papaia azedo”, “é filha do mesmo pai e da mesma mãe?”, “de certeza que não foi trocada na maternidade?”, “não se parece nada com os irmãos”, “é tão deslavada”, “coitadinha, não tem nada a ver com os outros” e por aí fora…
Não possuo uma única memória de ter sido a preferida de qualquer um dos meus familiares, pelo contrário. Até vir para Portugal estudar, a poucos dias de completar 20 anos de idade, nunca soube o que era ter a minha própria festa de aniversário. Se bem me lembro, e essas coisas jamais se esquecem, fui a única lá em casa que nunca teve direito a uma festa de anos, sequer um simbólico soprar de velas no dia de anos.
À custa disso, e de incontáveis sucedidos, cresci acreditando que ser preterida era o meu destino, era o que eu merecia. Hoje, a caminhar para os 45 anos de vida, detenho autoconhecimento, autoestima e autorrespeito suficientes para reconhecer que tal crença é falaciosa, limitadora, castradora. Hoje tenho maturidade de sobra para acreditar que o patinho feio sempre foi um cisne lindo.
Hoje ganhei consciência do meu valor, conheço a mim própria o suficiente para saber que cada um é como é e que eu sou única, especial, perfeita na minha imperfeição. Hoje sei que sentir-me preferida pouco tem a ver com os outros, mas antes comigo. Hoje sei que cabe a mim deter o poder de me preferir e não delegar essa responsabilidade a terceiros. Hoje sei que tudo aquilo que experienciei ao longo da vida só me tornou mais forte, mais resistente, mais preparada para ser aquilo que eu sou, para ser aquilo que eu quiser ser. Hoje tenho plena consciência de que sou aquela que eu mais prefiro no mundo.
Para além disso, hoje tenho ao meu redor pessoas incríveis que, todos os dias, me preferem. Que preferem estar comigo, que preferem falar comigo, que preferem celebrar comigo, que preferem chorar comigo, que preferem fazer parte da minha vida. Preferem tanto que muitas vezes não consigo dar vazão às suas solicitações. Esta crónica é, pois, um tributo a cada uma delas, uma forma de manifestar publica e inequivocamente o quão grata sou por ser a sua preferida e não a sua preterida.
Aquele abraço amigo e até à próxima!
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Artigo originalmente publicado no blog Ainda Solteira, em 7 de junho de 2016.
"Radicada em Lisboa, é blogger, cronista, inspiring talker, cupido profissional, organizadora de eventos e tudo o mais que a desafiar. Por gostar de ser/estar feliz, a sua escrita é recheada de humor e positividade, com uma pitada de sarcasmo pelo meio".
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